«Pero Mafaldo vivia no século XIII e deve ser contado entre os trovadores alfonsinos da côrte castelhana. Escreveu um serventês a despedir-se da verdade e poetou contra Pero de Ambroa e a famigerada Balteira. Pero Mafaldo, ironicamente, declara que irá mudando e mentindo. Toda a gente faz o mesmo. Falar verdade ao amigo? Não! Quem mente ganha com isso. Juro, pois, e digo que vou separar-me da verdade e querer mal a quem bem quero. Hei-de prosperar assim, como cavaleiro que sou. Que hei-de eu fazer, se a verdade para nada me serve nem aumenta a minha honra? Dai-me um conselho, por caridade. Assim vai a minha vida: Se minto ao meu amigo e ao meu senhor, medra o meu proveito e cresço em importância. Sempre a eterna ironia: só medram os malandros e os hipócritas.
Um trovador desconhecido, mas de elevada categoria técnica e boa
inspiração, deixou-nos uma poesia híbrida, de cantar de amor e de maldizer,
contra o mundo e os homens. Também ele se lembra dos bons velhos tempos: Quem
viu o mundo de antigamente e o vê agora, que há-de querer, senão desterrar-se
algures? Mas o mundo é só um e este é falso. Para onde foram a mesura e a grandeza? Onde
pára a verdade? Quem é leal ao seu amigo? Que se fez do amor e do trovar?
Porque anda a gente triste e sem cantar? Ainda assim, vivo por amor duma
senhora a quem muito quero, dos tempos em que amor havia. Fiquem, pois, a saber
porque não me vou algur esterrar, / se poderia melhor mund’achar. E este
pensamento vai batendo no final de cada estrofe, como condenação inapelável dos
tempos que já não são nossos.
Até aqui, temos a impressão dum cortejo poético de velhos pranteadores.
Contudo, esse cortejo não pára na Idade Média e salta aos olhos, por exemplo,
na França do século XIX, mesmo entre escritores audazes e criadores. Alfred Musset
condenava a geração nova por ser inculta, sans gaitê et sans amour. Chateaubriand
escrevia, em 1831: Tout paraît usé, art, littérature, moeurs, passion; tout
se détériore.
Lamartine afinava pelo mesmo diapasão e declarava que a França
apodrecia numa esterqueira e tudo se desgastava e morria. Eles não pressentiam,
entre tantos outros escritores, o advento de Baudelaire e do frisson nouveau
que depois faria estremecer Victor Hugo.
Afonso X e os Soldados
Afonso X, o Sábio, está no centro dum ciclo satírico, onde a
poesia é meio de ataque e de defesa, como os panfletos de hoje em dia. Atacou,
atacaram-no. E cada um tinha, em geral, as suas razões e os seus pontos fracos.
Às vezes, nada tão lúcido como o ódio.
Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do mordomo Rodrigo e
dos peões todos calvos e sen lanças e con grandes çapatões. Os versos do
rei valiam mais do que esta peonagem. E a sua indignação desafoga-se contra os
que recusaram acompanhá-lo na guerra, ao sul, contra os muçulmanos:
Nunca eu cinja espada em boa bainha, se Pero Espanha, ou Pero Galinha,
ou Pero Galego forem comigo! Outrem me acompanhará. Mendo Candarei pretextara
também qualquer dificuldade e não fora com ele. Fuão deixou-o sozinho na guerra
da Andaluzia e o rei sentia vontade de mandar ao demo a honra deste mundo, as
armas e o batalhar. O que faz chorar um homem não é brincadeira nenhuma! Chorar
e rir, por exemplo nesta sátira contra os guerreiros de menor categoria
(coteifes), alguns deles a tremer no meio do Verão, diante dos cavaleiros
mouros de Azamor:
O genete
pois remete
seu alfaraz corredor:
estremece
e esmorece
o coteife con pavor.
[…]
Vi coteifes de gran brio
eno meio do estio
estar tremendo sen frio
ant’os mouros d’Azamor;
e ia-se deles rio
que Auguadalquivir maior
Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem
passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e
não trouxe cavaleiros, maldito seja! O que recebeu grande soldada e nunca
fez cavalgada, se é rico-homem ou há mesnada, maldito seja! Não se trata de
cantiga para rir.
Temos, aqui, uma invectiva, algo da
maldição dum profeta atraiçoado e sozinho. Invectiva cheia de troça, como aliás
noutra cantiga quase logo a seguir: Quem da guerra levou cavaleiros e foi
guardar dinheiros à sua terra; quem não dava pão a comer aos soldados; quem, por
medo, foi para casa beber vinho; quem fugiu da fronteira ou andou a roubar os
mouros e foi para a sua terra roubar cabritos, esse non ven al maio.
Quer dizer, não vem à revista da tropa, ao alardo. Iam para a guerra a fingir. E alguns levavam pendão,
mas não levavam caldeira. N In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões,
1986.
Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT
JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,