Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916
«Reflecti alguns minutos sobre o
que lera, e continuei depois à procura de outras referências, mas naquele livro
não encontrei mais. Abri então o segundo livro, uma descrição sobre a colónia
portuguesa que habitava a capital moçambicana nos últimos trinta anos do século
XIX. O português era um pouco gongórico e nem sempre muito objectivo, mas o
relato parecia-me fidedigno. No entanto, ao longo das primeiras cento e
cinquenta páginas não encontrei nenhuma referência útil. Até que,
inesperadamente, o autor se refere jocosamente à história de uma tal Desmaiada,
que morrera ao dar à luz um filho, e que jurava não saber quem era o pai da
criança.
Seria Efigénia a Desmaiada?
Umas páginas à frente, o cronista
voltava a falar na Desmaiada, desta vez no âmbito de um capítulo sobre
miscigenação com os locais. Segundo ele, uma senhora de nome Efigénia Palma,
casada com um pirata português que morrera assassinado, tentara convencer a colónia
de que não sabia de quem engravidara! O relato prosseguia, recordando que o
marido da senhora em causa morrera mais de nove meses antes do nascimento do
filho, e que ela sempre dissera que desmaiara na noite da morte do marido, e
que alguém, misteriosamente, a tinha engravidado, aproveitando-se do facto de
ela estar desfalecida.
Como era óbvio, o cronista não
acreditava naquela versão, e acrescentava que, nove meses mais tarde, tornou-se
evidente que o pai dela era um criado de Efigénia. A criança tinha marcas de
raça negra, em locais pouco próprios, como reparara o médico, o sr. dr. Charles
Scholes. Fora ele quem, depois de interrogar os criados, descobrira ter sido um
deles, um tal Kalanga, que engravidara a senhora.
Fiquei boquiaberto com a
descrição. Pelos vistos, aquele episódio era motivo de chacota na época, sendo
apresentado como exemplo de uma trapaça feminina. Efigénia era descrita como
uma mistificadora inventiva, que tentara esconder as suas relações adúlteras com
um obscuro empregado negro. O único pormenor que não ficava esclarecido eram as
marcas evidentes de raça negra, em locais pouco próprios. De que falava
o cronista? Nas imagens que vira de Roberto Antunes não existiam essas
evidências, e obviamente que aquela referência a locais pouco próprios era
sugestiva de que se tratava de marcas que provavelmente não seriam captadas pela
objectiva de nenhum fotógrafo...
Como desvendar esta nova questão?
Não havia mais nada nos dois livros que me pudesse elucidar sobre pormenores
desta natureza. No dia seguinte, devolvi ao professor Chivunga os dois
exemplares emprestados. Agradeci-lhe a ajuda, e fiz um pequeno resumo das
descobertas. Ao ouvir o nome do dr. Charles Scholes, o historiador franziu a
testa: Um inglês, não era? Dirigiu-se ao seu computador, enquanto ia dizendo: Esse
nome não me soa estranho. Deixe-me aqui fazer uma pequena busca... Sentou-se e
teclou o nome do inglês. Esperei até que ele exclamou: Cá está! O que
descobriu? Há um livro escrito pelo próprio médico. São os relatos dos casos
que tratou enquanto viveu em Moçambique. É em inglês, mas há um exemplar na
Biblioteca Nacional. Sabe onde é?
Na manhã do dia seguinte,
sentei-me na grande sala da biblioteca, com o livro do médico inglês aberto à
minha frente. Era um inventário dos principais casos que tinha tratado durante
a sua estada em Lourenço Marques, entre 1875 e 1885. Listava uma profusão de doenças
e centenas de pacientes. Malárias, cóleras, sífilis, tuberculoses e muitas
outras mazelas eram descritas com algum pormenor, bem como partos, apendicites
ou outras operações.
A dada altura, o dr. Charles
Scholes narra a morte de Roberto Carvalho Lobo, confirmando que ele sucumbira
na sequência dos ferimentos de balas, num pulmão e no abdómen, perdendo muito
sangue. Quando chegara a sua casa, já nada havia a fazer pelo pobre homem, a
não ser aguardar a sua morte. Numa curta nota final, o dr. Scholes referia que
uma comoção muito forte se apoderara da esposa, Efigénia, tendo ela desfalecido
e perdido os sentidos durante toda a noite.
Uns meses depois, uma nova
entrada no livro dedicava-se a Efigénia. O médico, cuja escrita espelhava a
surpresa que o episódio lhe deixara no espírito, fora chamado de novo à casa da
senhora, para certificar a sua inesperada gravidez. Efigénia, que andava de
luto, confessara-lhe que se tratava de uma gravidez impossível, pois ela não
dormira com o marido nos últimos meses antes da sua morte. Portanto, não podia
estar grávida! Embora espantado com aquele relato, o dr. Scholes confessava que
Efigénia lhe parecera honesta e profundamente perturbada por aquele estranho
facto, quase se comparando a Nossa Senhora, que concebera por milagre. Pedira-lhe,
aliás, o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a
razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar
grávida do marido há mais tempo do que pensava.
Trinta páginas à frente, o dr.
Scholes fazia o relato do parto da criança. Notando que fora uma gravidez
complexa, que enfraquecera muito uma mãe cujo espírito já estava debilitado
pela angústia de não compreender como concebera, o dr. Scholes relembrava a extrema
complexidade do nascimento da criança, que demorara muito tempo a dar a
volta dentro da barriga da mãe, provocando a esta várias hemorragias e
muita dor. Para mais, nascera com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, o que
quase a asfixiara e muito contribuíra para o enfraquecimento da mãe. Efigénia
foi vítima de inúmeras infecções e acabaria por falecer apenas vinte e quatro
horas depois do nascimento do filho, para grande desalento do dr. Scholes». In
Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN
978-972-461-802-9.
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