«As louvaminhas e cantares de galhofa recebem honras e poder. Nos lugares onde nobres ditos se ouviam, vejo eu expulsar gente honrada. Os que dizem mal, a esses acolhem-nos e louvam-nos com muito amor. Dantes dominava o saber, tinham formoso lugar a paz e a cortesia, quando a alegria morava no mundo. Mas ela foi-se embora, dizendo: dia a dia, hei-de ir faltando!
Chegara a sua hora, fugia para se esconder. Bem mereceu este descordo
as honras de H. R. Lang, em The
descort in old portuguese and spanish Poetry, e não menos de Luciana
Stegagno Picchio, em Martin Moya.
Poesie. É a
revolta contra a decadência cultural e contra o triunfo mesquinho dos vícios, à
sombra de mecenas estúpidos.
Adiante, num serventes, conta-nos o poeta uma estória que serve
de parábola: Depois de muito andar, entrei num sítio onde nem a lealdade, nem a
boa manha, nem o juízo nem o saber tinham apreço de ninguém. Aí só prosperava
quem gabava tudo o que o senhor da terra fazia, quem o lisonjeava, mesmo que o
visse andar a semear sal. Quem ali chegar, sem mentir nem trocar o mal pelo
bem, livre-se como eu me livrei. Ora, quando eu lá estava, sonhei muitas vezes
que uma cerceta agarrava a poupa pelo penacho da cabeça. A cerceta, que
significa ela? E como foi capaz de prender a poupa?
Quem poderá interpretar-me este sonho? Rodrigues Lapa faz deste sonho
um símbolo de como os grandes poderiam ser dominados pelos pequenos: a certeza,
mais forte, começou por arrancar a crista à pôpa, que acabou por vencê-la.
Teríamos um incentivo à luta dos fracos contra os fortes opressores. Propomos outra
hipótese. A cerceta (ave palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas,
ainda assim, mais forte do que a poupa) segurou bem firme a cresta da
poupa e dominou-a. E esta última simboliza, talvez, os que se tiram porcamente
das dificuldades. Com efeito, ajeitam-se ao querer dos fortes e estes
prendem-nos pela gloríola da amizade e dos interesses, representados no lindo
penacho de plumas. Por isso aconselha Martin Moxa a que não se desquitem
como eu vi quitar alguen. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a
apologia de dignidade humana.
Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro
serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: ca vej’agora
o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí. Que nele haja ou não
objectividade externa, isso parece-nos secundário. É na objectividade interna
desse estado de alma que enraíza a beleza triste deste pranto dos tempos de
agora: Nunca vi andar assim o mundo. O outro era diferente e é desse que gosta
o meu coração! Nada me importa morrer, pois em nada acho gosto nen sei amigo
de que diga ben. E no fim de cada estrofe, ouve-se o mesmo protesto de
inadaptação à vida, na velhice: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que
nunca oí.
É a angústia dum homem que ficou sozinho
no meio da nova multidão anónima e sem rosto. Esta sátira aos tempos novos,
repetem-na, em prosa, os velhos de todas as gerações, mesmo simples camponeses.
Os amigos morreram e os costumes são outros». In Mário Martins, A Sátira na
Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série
Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual
Camões, 1986.
Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT
JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,