sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí»

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«As louvaminhas e cantares de galhofa recebem honras e poder. Nos lugares onde nobres ditos se ouviam, vejo eu expulsar gente honrada. Os que dizem mal, a esses acolhem-nos e louvam-nos com muito amor. Dantes dominava o saber, tinham formoso lugar a paz e a cortesia, quando a alegria morava no mundo. Mas ela foi-se embora, dizendo: dia a dia, hei-de ir faltando!

Chegara a sua hora, fugia para se esconder. Bem mereceu este descordo as honras de H. R. Lang, em The descort in old portuguese and spanish Poetry, e não menos de Luciana Stegagno Picchio, em Martin Moya.

Poesie. É a revolta contra a decadência cultural e contra o triunfo mesquinho dos vícios, à sombra de mecenas estúpidos.

Adiante, num serventes, conta-nos o poeta uma estória que serve de parábola: Depois de muito andar, entrei num sítio onde nem a lealdade, nem a boa manha, nem o juízo nem o saber tinham apreço de ninguém. Aí só prosperava quem gabava tudo o que o senhor da terra fazia, quem o lisonjeava, mesmo que o visse andar a semear sal. Quem ali chegar, sem mentir nem trocar o mal pelo bem, livre-se como eu me livrei. Ora, quando eu lá estava, sonhei muitas vezes que uma cerceta agarrava a poupa pelo penacho da cabeça. A cerceta, que significa ela? E como foi capaz de prender a poupa?

Quem poderá interpretar-me este sonho? Rodrigues Lapa faz deste sonho um símbolo de como os grandes poderiam ser dominados pelos pequenos: a certeza, mais forte, começou por arrancar a crista à pôpa, que acabou por vencê-la. Teríamos um incentivo à luta dos fracos contra os fortes opressores. Propomos outra hipótese. A cerceta (ave palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas, ainda assim, mais forte do que a poupa) segurou bem firme a cresta da poupa e dominou-a. E esta última simboliza, talvez, os que se tiram porcamente das dificuldades. Com efeito, ajeitam-se ao querer dos fortes e estes prendem-nos pela gloríola da amizade e dos interesses, representados no lindo penacho de plumas. Por isso aconselha Martin Moxa a que não se desquitem como eu vi quitar alguen. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a apologia de dignidade humana.

Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí. Que nele haja ou não objectividade externa, isso parece-nos secundário. É na objectividade interna desse estado de alma que enraíza a beleza triste deste pranto dos tempos de agora: Nunca vi andar assim o mundo. O outro era diferente e é desse que gosta o meu coração! Nada me importa morrer, pois em nada acho gosto nen sei amigo de que diga ben. E no fim de cada estrofe, ouve-se o mesmo protesto de inadaptação à vida, na velhice: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí.

É a angústia dum homem que ficou sozinho no meio da nova multidão anónima e sem rosto. Esta sátira aos tempos novos, repetem-na, em prosa, os velhos de todas as gerações, mesmo simples camponeses. Os amigos morreram e os costumes são outros». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,