«(…) Joana não percebeu o que tinha feito de mal, mas apercebeu-se de uma dureza estranha na voz da mãe. Sentiu que ela a mandaria regressar à sua cama se não procurasse reparar o dano. Disse, rapidamente: Falai-me outra vez dos Antepassados. Não posso. O teu pai não acha bem que eu te conte essas histórias. Estas palavras eram um misto de afirmação e interrogação. Joana sabia o que fazer. Colocando ambas as mãos sobre o coração, recitou o juramento exactamente como a sua mãe lho tinha ensinado, prometendo segredo eterno, em nome de Thor, o deus do Trovão. Gudrun riu-se e voltou a abraçar Joana. Muito bem, passarinho. Vou contar-te a história, uma vez que tens tanto jeito para a pedir. A voz dela voltou a ser carinhosa, sussurrante e melodiosa quando começou a falar de Woden, Thor e Freya e de todos os outros deuses que tinham povoado a sua infância saxónica, antes de os exércitos de Carlos Magno terem trazido a Palavra de Cristo com um banho de sangue e de fogo. Falou cadenciadamente sobre Asgard, o reino radioso dos deuses, um país com palácios em ouro e prata, que só podiam ser alcançados atravessando Bifrost, a misteriosa ponte sobre o arco-íris. A guardar a ponte estava Heimdall, o Guardião, que nunca dormia e cujo ouvido era tão apurado que ouvia a erva a crescer. Em Valhalla, o palácio mais belo de todos, vivia Woden, o pai dos deuses, sobre cujos ombros poisavam dois corvos: Hugin, o Pensamento, e Munin, a Memória. Sentado no seu trono, enquanto os outros deuses festejavam, Woden meditava sobre as verdades que o Pensamento e a Memória lhe segredavam ao ouvido.
Joana acenava com a cabeça,
contente. Esta era a parte da história que ela mais gostava. Falai-me do Poço
da Sabedoria, pediu ela. Apesar de já ser muito sábio, explicou a mãe, Woden
buscava sempre alcançar mais sabedoria. Um dia, foi ao Poço da Sabedoria,
guardado por Mimir, o Sábio, e pediu-lhe autorização para beber dele. Que preço
estás disposto a pagar?, perguntou Mimir. Woden respondeu que Mimir podia pedir
o que quisesse. A sabedoria só se adquire com dor, respondeu Mimir. Se queres
beber desta água, tens de sacrificar um dos teus olhos. Com os olhos a brilhar
de excitação, Joana exclamou: E Woden pagou, mamã, não pagou? Pagou! A mãe
acenou com a cabeça. Apesar de ter sido uma escolha difícil, Woden consentiu em
perder um olho. Bebeu a água. Depois, transmitiu à humanidade a sabedoria que
tinha adquirido. Joana levantou os olhos para a mãe, com um ar grave. Teríeis
feito isso, mamã, para ser sábia, para saber tudo? Só os deuses é que fazem
estas coisas, respondeu ela. Depois, vendo que a filha continuava a olhar para
ela insistentemente, Gudrun confessou: Não. Teria tido demasiado medo. Eu também,
disse Joana, pensativa. Mas, teria querido ser capaz de o fazer. Teria querido
saber tudo quanto o poço pudesse dizer-me. Gudrun sorriu para o rostinho
decidido.
Talvez não gostasses daquilo que
podias aprender ali. Há um ditado do nosso povo que diz: O coração de um homem
sábio raramente é feliz. Joana abanou a cabeça, apesar de não compreender muito
bem. Agora, falai-me da Árvore, disse ela, aconchegando-se mais à mãe. Gudrun
começou a descrever Irminsul, a maravilhosa árvore do universo. Encontrava-se
no bosque saxónico mais sagrado, na nascente do rio Lippe. O seu povo tinha-a
adorado até ela ter sido abatida pelos exércitos de Carlos Magno. Era muito
bela, disse a mãe. E tão alta que não se conseguia ver o cimo. Era... Interrompeu-se.
Tendo-se apercebido subitamente de outra presença, Joana levantou os olhos. O
seu pai estava parado à entrada. A mãe sentou-se na cama. Marido, disse ela. Não
esperava o vosso regresso senão amanhã. O cónego não respondeu. Pegou numa vela
de cera que se encontrava na mesa junto à porta e aproximou-se da lareira para
a acender.
Gudrun disse, nervosa: A criança
estava com medo da trovoada. Pensei que podia confortá-la contando-lhe uma história
inocente. Inocente! A voz do cónego tremia com o esforço para controlar a ira. Chamas
a uma blasfémia dessas uma história inocente? Percorreu a distância que o
separava da cama em duas passadas, pousou a vela e puxou o cobertor,
destapando-as. Joana estava deitada abraçada à mãe, meio escondida sob uma
cortina de cabelo dourado. Por momentos, o cónego ficou parado, estupefacto,
olhando para o cabelo solto de Gudrun. Depois, a fúria apoderou-se dele. Como
te atreveste! Quando eu o proibi expressamente! Agarrando Gudrun, começou a
arrastá-la para fora da cama. Bruxa pagã! Joana agarrou-se à mãe. O rosto do cónego
ensombrou-se. Desaparece, filha!, bramiu ele. Joana hesitou, dividida entre o
temor e o desejo de proteger a sua mãe, de algum modo. Gudrun empurrou-a
suavemente. Sim, larga-me. Vai depressa». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana,
2000, Editorial Presença, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.
Cortesia de EPresença/JDACT
Donna Woolfolk Cross, JDACT, Literatura, Vaticano,