Conclave
26
de Agosto de 1978
«(…) Contudo,
o homem não ia lhe fazer as vontades. Muito pelo contrário. A ideia era acabar
com todas. E tudo terminou muito rápido. Viu a arma, segura por um punho
envolvido numa luva de couro, atravessar a névoa. Assim que divisou o restante
do corpo, agarrou o extintor com toda a força e impulsionou-o contra a cabeça
do homem. Este esquivou-se, aninhando-se e avançando adiante, meneando o corpo
até acabar de frente para Sarah Monteiro, de arma apontada. Em nenhum momento
perdeu o equilíbrio. Movimentos precisos de quem conta com o imponderável. Sua
massa corporal tapa quase toda a luz exterior que entra pela janela e impede
que Sarah consiga ver o seu rosto. Apenas uma silhueta grande que lhe aponta
uma arma. Uma peça letal que lhe dará uma morte rápida. Dois disparos. Sarah dá
um grito abafado e deixa-se cair ao longo da parede. É isso que se sente quando
se leva dois tiros? Nada? Será que a morte foi tão rápida que passou
instantaneamente para o lugar para onde se vai quando se morre? O estrondo do
homem caindo pesadamente de barriga para baixo no soalho retira-a dos desvarios
espirituais. A cabeça dele ficou em cima das suas pernas. Os olhos apáticos,
vazios, esbugalhados na direcção dela, numa espécie de manifestação derradeira
de incompreensão do que sucedera.
A melhor
palavra para caracterizar o que se passou nos últimos segundos com Sarah
Monteiro é milagre. Não um daqueles reconhecidos pela Santa Madre Igreja, com
todos os exames físicos, documentais, testemunhais e ficcionais, mas um
providencial, personificado na decisão engenhosa de Sarah, combinado com a
sorte que o Além, lança sobre os humanos em certas ocasiões, e que pode ser
aproveitada ou não. Nem Sarah compreendeu de imediato. Só instantes depois
reparou em dois pequenos buracos no vidro da janela. Com medo, coloca um dedo
nas costas do homem e sente a humidade do sobretudo. Sangue. Alguém
desempenhara o papel de seu anjo da guarda. Mas quem? Senhor Raul, tem muito
que me explicar. Agora é hora de fugir.
Times
Square. Um dos centros do mundo civilizado, comparável a Trafalgar Square,
Champs Élysées, Alexanderplatz, Praça de São Pedro e por aí afora. Na praça do
tempo, onde o relógio digital marca as horas, os minutos e os segundos que
faltam para o novo ano, o barulho nocturno é idêntico ao diurno. Nessa cidade
de Nova York, e ainda mais nessa praça mítica do coração nova-iorquino,
norte-americano e também de alguns europeus, a publicidade luminosa enche os
olhos dos turistas, a luz ofuscante do apelo ao consumismo, estímulo primeiro
do mundo capitalista. O volume de trânsito é igualmente digno de nota: transportes
públicos, automóveis, táxis amarelos, caminhões de carga, tudo a convergir para
a Broadway e para a Sétima Avenida, onde estas se cruzam e se afastam para
outros destinos no imenso emaranhado de ruas e avenidas, túneis e pontes de
Manhattan. Milhares de pessoas ocupam as ruas nessa parte da cidade. A que nos
interessa: todo o quarteirão que circunda a Times Square até à Rua 42. Não que
o lugar importe mais do que o homem que nele anda, com passos muito seguros e
resolutos, o casaco aberto esvoaçando para trás como uma capa ao vento, tamanha
a velocidade que imprime ao andar. De onde vem não é relevante informar, já que
a lista é extensa -muitos lugares por esse mundo afora; tudo para que se cumpra
o objectivo, o Grande Plano traçado por uma mente mais brilhante que a dele.
Passa indiferente à indiferença dos milhares de transeuntes que com ele
partilham o passeio largo. Na enorme bilheteira da TKTS incrustada na 47, mesmo
entre a Broadway e a Sétima Avenida, o mais famoso cruzamento do mundo, coloca-se
na fila e apura os ouvidos.
Um para o
Chitty Chitty Bang Bang, por favor. Para a sessão das sete, pede o idoso que
está sendo atendido, duas pessoas à sua frente. Chitty Chitty Bang Bang. Os
lábios do homem do casaco abrem-se num sorriso. Bastante apropriado. Assim que
chega a sua vez na fila, compra um bilhete para a mesma sessão da mesma peça,
em cena no Hilton Theatre, na Rua 42. Perambula alguns minutos pelas lojas e
toma um cappuccino no Charley Co's. Poderia pensar-se que está apenas gastando
tempo até o início da peça, mas um olhar mais atento, algo impossível de pedir
às pessoas que por ali andam, imersas na sua vida, revela que esse homem não
anda ao sabor da sua vontade. Segue os devaneios de caminhante de um outro, o
idoso que comprou, apenas há minutos, um bilhete no posto de venda da TKTS». In Luís
Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT
JDACT, Luís Miguel Rocha, Literatura, Vaticano, Religião, Roma,