A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
«(…) Usava um chapéu
extravagante, de um tipo que eu nunca tinha visto, preto, com uma pena roxa e
mais esmerado do que os usados por pantomimos e actores que fazem representações
teatrais em praças nas épocas do Natal e da Páscoa. Fivelas reluziam em seus
sapatos, enquanto uma agitação de rendados espumava nos punhos e pescoço. Uma
argola de ouro pendia de uma orelha, e, no seu rosto bronzeado, ele deixara
crescer um bigode e um minúsculo cavanhaque. Pelas roupas e modos, vi que era o
capitão. Curvou-se sobre mim e alisou meu cabelo. Virei bruscamente a cabeça
para o lado e enfiei os dentes na sua mão, consequentemente, ele me atingiu com
a bengala de bambu que carregava. Recuei para o canto como um animal selvagem.
O capitão da galé chupou o local da mordida, mas longe de ficar irritado com
meu ataque, ele fez um gesto de aprovação com a cabeça. Gosto de um jovem com
coragem, declarou. Isso significa que será útil numa batalha e capaz de evitar
problemas para nossos próprios remadores. Está esquelético demais para pegar
imediatamente num remo, mas se fortalecerá para isso se o alimentarmos.
Permaneci onde estava pelo resto
do dia, agachado no canto. Naquela noite, ancoramos em águas rasas ao largo de
uma ilha para que os remadores pudessem descansar e comer. O capitão me deu um
pedaço da cabra que assava num braseiro montado no convés, dentro de uma
fornalha de ferro usada para cozinhar alimentos. Comi avidamente. Haviam-se
passado semanas, talvez meses, desde que eu comera carne pela última vez. O
capitão deu uma risadinha enquanto me observava a devorar a comida. Calma,
rapaz. Não parece ter tido uma refeição decente em toda a sua vida. Entupir-se
assim tão rápido só vai-lhe causar dor de barriga. Ele tinha razão. Uma hora
depois, eu estava curvado por causa das cólicas, depois que a comida, de um
tipo que eu não estava acostumado, seguiu seu caminho pelas minhas entranhas.
Para minha surpresa, alguns dos remadores vieram-me examinar.
Eu havia imaginado que eles
estivessem acorrentados aos seus bancos, mas apenas um pequeno número, oito no
total, era de escravos ou criminosos aprisionados daquela maneira. O resto,
mais de vinte homens livres, tinha decidido fazer aquele trabalho. Descobri que
homens de vários países se tornavam remadores de galés por opção. Esse era
considerado um trabalho que requeria habilidade, embora árduo, mas o pagamento
e os lucros podiam ser bem recompensadores: além do salário básico, o remador
recebia uma percentagem do lucro obtido pela carga e de qualquer botim que
surgisse no seu caminho. Nessa galé em particular, sob o comando do capitão
Cosimo Gastone, a comida era nutritiva: carne, peixe ou ave, com bastante pão,
queijos fortes e frutas e mel engolidos com vinho. Os remadores eram excepcionalmente
bem alimentados, pois o capitão achava que deviam se manter no melhor da sua
forma. Eu iria descobrir, do modo mais brutal, que nossas próprias vidas
dependiam da aptidão dos remadores.
Saulo
No dia seguinte, o capitão me
entregou ao mestre remador, que se chamava Panipat. Era um gigantesco
homem-urso com braços grossos, peito e pernas musculosos, vestido apenas com
calções curtos de couro, um chicote e uma faca comprida enfiados no cós. Cada
centímetro de pele exposta estava coberto por tatuagens pretas e azuis, até, e
incluindo, a superfície da sua cabeça rapada. Amarrada em volta do pulso havia
uma corda da qual pendia a chave da corrente dos escravos. Está na hora de conhecer
Panipat. O capitão Cosimo cutucou com a bengala as minhas costas, empurrando-me
à sua frente ao longo da estreita passarela de madeira que percorria o centro
do barco. Panipat estava sentado na vante conversando com um tripulante que
cuidava do canhão posicionado ali. Aquele era o local onde ficava o pequeno
grupo de remadores acorrentados, logo atrás da proa. Os quatro de um lado eram árabes,
provavelmente capturados e comprados pelo capitão num mercado de escravos. Os
quatro do outro lado eram homens de diferentes lugares que haviam sido
sentenciados às galés por causa da gravidade dos seus crimes. Se fôssemos
atacados e nosso canhão servisse de alvo para o fogo inimigo, eles seriam as primeiras
baixas. Havia evidências de que o chicote fora usado nas suas costas e ombros.
Estremeci quando os vi, cada um acorrentado ao seu banco, pois sabia que, no
devido tempo, aquele seria meu destino. Interminável e para sempre. O capitão
Cosimo anunciou nossa presença. Se isso lhe agrada, nobre mestre dos remadores,
tenho um novo rato de galé para si». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,