Highgate Cemetery,2005
«(…) Durante muito tempo houve somente dois corpos lá em baixo. Gabriele, o pai, teve a cegueira a prepará-lo. Não custava deixar um mundo onde a leitura lhe faltara. Na sala que as elites liberais e os belos exilados frequentavam e onde aquele que viria a ser imperador de França tinha exposto os sonhos juvenis, as conversas perdiam o fulgor. O anfitrião já não iluminava. Os visitantes vinham, sobretudo, agora, por Christina que não deixava de os desconcertar. Eram então serões armadilhados em que o fervor literário dos Rossetti disfarçava mensagens sexuais que se autodestruíam com decência. Gabriele morria confortável, na boa idade, venerado e pobre. O seu trabalho de procriador fora bem sucedido, pelo menos a um primeiro olhar: dois filhos belos, duas filhas devotas. E o seu corpo que conhecera a energia do poema e a energia da revolução confundidas num único argumento gerara realmente, nos rapazes, uma formação de arte e rebeldia. Mas o impacto das ruas abrandava na saia das mulheres e todo o escândalo era domesticado antes de entrar.
O
segundo caixão que aqui desceu levava dentro Elizabeth Siddal em 1862. Sete
anos mais tarde, no Outono, à luz de uma fogueira, o portuguee, como era
designado com desprezo, mandou abrir a cova. Ninguém, a não ser este Charles
Howell, se atreveria a tanto. Descendia do marquês de Pombal e executava
qualquer tarefa, como um jornaleiro.
Manchester,1857
A
coisa é, em três quartos, lixo inglês, escreveu Engels a Marx. Do gigantesco
número de obras expostas, pouco mais apreciou do que um retrato de Ariosto por
Ticiano. Tinha o olhar impressionado pelas imagens da miséria real. Fora gerir
as fábricas do pai. Manchester tinha feito novos ricos mas costumava segredar
contra si própria a quem tivesse tempo para a ouvir. O cérebro alemão de
Friedriech Engels compreendeu que havia um pensamento que acabava de achar um
pensador. O dinheiro da família era bastante para sustentar também Marx e a
mulher. Se for possível, passem cá no Verão, propõe, porém com clara displicência.
A Grande Exposição não o distrai. A arte inglesa conhecia, é certo, alguns
atrevimentos. A energia dos vitorianos vibrava contra eles e recolhia, com um
suspiro de satisfação. O verdadeiro horror, o das ruelas, dos doentes e dos
assassinos, mantinha-se na treva, de perfil. Exceptuando certas expedições de
caridade, a cujo estilo não eram estranhos os massacres, só os livros de
Dickens estabeleciam um pequeno contacto entre os dois mundos. Esperava-se,
entre certos socialistas, que o encontro entre eles sucederia. Isso seria mais perturbador
do que as ideias em que Darwin trabalhava. E, no entanto, o inglês comum olhava
com cuidado para o chão, preocupado com a porcaria. Dentro do seu percurso, não
previa nenhuma outra ameaça. Artistas e mulheres emancipadas apareciam por
vezes nas conversas, enquanto se fumava. A digestão tornava-se difícil e
interessante. Passava neles um frémito, a lembrança da voz das prostitutas nas
esquinas. O génio de Wordsworth ficaria para sempre obscurecido se ele tivesse
morado, nem que fosse uma semana, na bruma de Manchester, escrevera um jornalista.
Em 1857, uma cidade negra e brutal negava essa má fama com a mais requintada
das vinganças. Batia Londres no seu próprio campo. Seis anos antes, a capital
organizara a grande exposição universal, que celebrava sobretudo o progresso da
indústria. Manchester, com um gosto inesperado, chamou à sua Tesouros da Arte e
dedicou-a unicamente às obras que as colecções privadas possuíam. Houve um entusiasmo
nos empréstimos. A verdade é que as casas dos ricos mancunianos estavam cheias
de preciosidades. A nobreza também se mostrou generosa. Conhece-se a excepção
do duque de Devonshire que, em resposta, mandou os emissários ocuparem-se do
que lhes competia e regressarem para os seus teares». In Hélia Correia, Adoecer, Relógio
D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-160-2.
JDACT, Hélia Correia, Literatura,