Guimaraes, Março de 1120
«(…)
Não vos disse já que ides para Lamego?, perguntou, entediada. Apontou com o
dedo a porta e ordenou: esperai lá fora. Como o príncipe não se mexeu, todos
ficámos na expectativa. Desejo ficar convosco em Guimarães, declarou Afonso
Henriques. A rainha contraiu o rosto, irritada, como se o que ele tinha acabado
de dizer fosse um disparate. Que dizeis? Sabeis bem que vos mandei ir com Egas
e Ermígio! Aumentara o tom de voz, mas o filho não se impressionou. Já tenho
quase onze anos, é tempo de me juntar à corte e de permanecer aqui, junto a vós.
Enfurecida, a mãe gritou-lhe: não vou ficar em Guimarães! Vou para Viseu e
depois para Coimbra! Ide lá para fora! Depois, incentivou Fernão Peres a
prosseguir, mas Afonso Henriques deu um passo em frente. Estava agora apenas a
três metros da mãe, e esta deitou-lhe um olhar furibundo, enquanto ele
afirmava: então vou convosco para Viseu e para Coimbra.
Dona Teresa começou a arfar, tal
era a ira que se apossara dela por o filho a desafiar em frente de terceiros.
Egas e Ermígio revelaram-nos mais tarde que sentiram um contentamento secreto
por assistir àquela exibição de firmeza do seu protegido, embora discordassem
do pedido, pois não queriam ceder a sua posição privilegiada de guardiões do príncipe
herdeiro do Condado Portucalense, a última influência que lhes restava. Talvez
por ser o mais lúcido e perverso dos presentes, o Trava foi o primeiro a falar
e, com a sua voz intensa e solene, declarou: em Coimbra há combates permanentes
com os sarracenos, a vossa vida correria perigo. Sem sequer olhar para ele,
Afonso Henriques ripostou: não mais do que a de minha mãe e bem menos do que a
vossa, pois não tenho idade para lutar em batalhas.
Meu pai e meu tio sorriram,
agradados com a acutilância daquela resposta, mas o sagaz Trava percebeu de
imediato que o afrontamento não era a melhor via para lidar com aquele rapaz e
apontou para nós, as crianças. Em Coimbra, não teríeis os vossos amigos, o
Lourenço, o Afonso, o Soeiro, a Raimunda. Com quem ireis passar os dias, com o
bispo da Sé?, ironizou. Pela primeira vez, Afonso Henriques pareceu duvidar dos
seus desejos. O Trava, notando que aquela era a via certa, insistiu: além
disso, o Ermígio e o Egas, agora que terão poucos afazeres, podem levar-vos a
Tui. Caçar ursos... Já ao corrente dos desejos do príncipe, o Trava esperou a
sua reacção, mas depois de um curto silêncio, aquele deu meia-volta e voltou a
sair da sala, aceitando sem mais palavras as ordens da mãe. E nós, seus amigos,
fomos atrás dele.
A minha prima Raimunda revelou-me
que nessa noite, ainda em Guimarães, foi pela primeira vez ter à cama do príncipe.
Afonso Henriques ficava num quarto sozinho, enquanto ela dormia connosco.
Quando a ouviu entrar, ele franziu a testa, mas ela justificou-se: o Soeiro está
constipado, ressona muito, não consigo adormecer. Era mentira, mas Afonso
Henriques acreditou na minha prima, deixou-a subir para a cama e ficou ainda
mais surpreendido quando ela o beijou na boca. Porque me haveis dado um beijo?,
perguntou. A minha prima disse-lhe que queria ser amiga dele, em segredo, sem nós
sabermos, e que podia dar-lhe beijos todas as noites. Não temos idade para
essas coisas, disse o príncipe. A atrevida da minha prima logo lhe retorquiu: mas
um dia vamos ter, e nesse dia ides gostar de me ter aqui... Convencido, Afonso
Henriques permitiu que ela lhe desse mais um beijo e depois ficaram calados no
escuro, até que ela perguntou: haveis achado a Chamoa bonita? Afonso Henriques
fingiu que já estava a dormir e não respondeu, mas na verdade continuava
acordado, e assim ficou mesmo depois de Raimunda adormecer. Naquela noite, o
seu espírito divagava entre dois opostos. A preocupação, por concluir que o
Trava, um espírito afiado, lhe era hostil; e a excitação, quando lhe vinham à
lembrança aqueles cabelos cor de mel e aquele sorriso gracioso de menina. O meu
melhor amigo não sabia resolver o dilema que o dividia, e tinha muita pena de
que Chamoa fosse sobrinha do Trava. Sempre teve. Só que a pena é um sentimento
bonito, mas nunca é muito forte.
Rio Nabão, Março de 1120
Só muitos anos depois dos
acontecimentos que se seguem é que vim a saber quem era a mulher de negro, ou a
bruxa, como lhe chamavam os medrosos. Mem é que a conhecia, foi a ele que ela
descreveu estes fragmentos de vida. O meu relato neste caso é, pois, impreciso.
Mesmo assim, é importante contá-los aqui, pois revelaram-se fundamentais para o
reino de Portugal nascer. A bruxa é que nos ligou a todos, como repetia sempre
Zaida». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa
das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,