Zarita
A
chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491
«(…) Menos de uma semana atrás,
Ramón teria procurado qualquer desculpa para me envolver nos seus braços, mas
agora ele me fizera um afago e deixara os braços caírem pelas laterais. Eu era
tão feia assim na minha dor? Eu sabia que meus olhos estavam vermelhos de
chorar, as faces manchadas, a mantilha torta por eu ter puxado e coçado o
cabelo. Ardelia atraiu-me delicadamente para si.
Que bandos de
anjos a conduzam ao Paraíso...
Chegara a hora da despedida. Os
familiares próximos entraram no mausoléu. O cheiro de morte penetrou nas minhas
narinas. As luzes bruxuleavam nas paredes.
Que lhe seja
concedido o descanso eterno, Ó Senhor. Descanso eterno.
Eterno. Para sempre. Eu nunca
mais veria a mãe novamente.
Meus sentidos pareceram flutuar,
e um barulho atordoador percorreu minha cabeça. Então um braço forte estava nas
minhas costas e dedos me apoiavam pelo cotovelo. Por um segundo vertiginoso
pensei que fosse Ramón vindo em meu auxílio. Mas era a tia Beatriz que estava ao
meu lado. Zarita, falou com firmeza no meu ouvido, comporte-se com dignidade. Sua
mãe teria desejado isso. Mordi o lábio com força suficiente para sentir gosto
de sangue. Endireitei-me e ergui bem alto a cabeça. No meu outro lado Ardelia
apertou com sua enorme mão a minha e sussurrou palavras de encorajamento no meu
ouvido.
Enterraram a mãe com o bebé que
ela dera à luz; o bebé menino pelo qual meu pai ansiava tão desesperadamente
para que seguisse os seus passos, cuidasse da fazenda, fosse um orgulhoso
proprietário de terras como ele e perpetuasse seu nome.
Depois da cerimónia, o pai estava
exausto; retirou-se para o seu quarto assim que voltámos do cemitério. Fui
deixada para cuidar dos enlutados que tinham aceitado a oferta de comida e
bebida em nossa casa. Ramón estava presente, mas não ficou ao meu lado, como
deveria ter feito, para me ajudar a cumprimentar e depois agradecer aos
convidados por terem comparecido para apresentar as suas condolências. Minha
tia Beatriz foi embora mais ou menos uma hora depois. Ela me abraçou e me
beijou.
Perder a mãe é uma dor
esmagadora, Zarita. Saiba que compartilho seu pesar e que isso lhe sirva de
consolo. Eu amava minha irmã, pois ela era linda tanto de aparência quanto de
carácter. Ela se foi..., esperemos que para um lugar melhor do que este. Tia
Beatriz fez o sinal da cruz em mim, tocando-me a testa, o coração e através do
peito. Cada pessoa sobre esta terra tem o seu próprio Calvário para escalar, Zarita.
Só posso dar-lhe um pequeno conselho. Faça como sua mãe teria feito. Continue o
trabalho dela. Seja activa nos seus actos de caridade. Tenha interesse naqueles
dentre nós que nada têm. Pense se há pessoas que podem precisar da sua ajuda.
Talvez nem saiba quem são. Cabe-lhe encontrar tempo para procura-las.
As palavras de minha tia
permaneciam na minha mente quando comecei a acender os lampiões contra a
escuridão. Todos tinham ido embora, menos Ramón Salazar, que estava afundado numa
poltrona junto à janela, um cálice pendendo da sua mão. Seu belo rosto estava
afogueado de tanto vinho e me lembrei de como tínhamos sido felizes havia menos
de dois ou três dias. Uma repentina lembrança do mendigo na igreja me surgiu,
junto a outro pensamento. Fui até lá, sentei-me na poltrona defronte a Ramón e
lhe perguntei se ele se lembrava das palavras que o homem pronunciara. Ramón,
porém, não queria lembrar-se daquele dia. Tentou contornar minha pergunta e
relutou em manter uma conversa sobre o incidente. Mesmo assim, insisti: a
vergonha por minha falta de caridade para com o mendigo, que causara a sua
execução, me fazia falar. Ele mencionou uma esposa, comentei. O quê? Ramón
bebeu mais um pouco do cálice de vinho. Suas palavras eram indistintas. Quem
tem uma esposa? O mendigo, repeti. Quando me pediu uma moeda na igreja, ele
mencionou que sua esposa estava doente e que poderia morrer. E daí? Ramón
bocejou. Eu estive pensando, falei bem baixinho, o que terá acontecido com ela?»
In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014,
ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,