terça-feira, 11 de maio de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Eu vi você saindo da igreja no dia em que o mendigo supostamente a agrediu. Ele me tocou mesmo, falei em voz baixa, pois aquele era um dia que eu preferia esquecer»

Cortesia de wikipedia e jdact

Zarita

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) Não fiquei demasiadamente preocupada, porque Ramón sempre fora atraído por mim e somente por mim. Por mais de um ano ele me perseguiu e procurou minha companhia, de tal maneira que veio a ser como um membro da família. Eu acreditava que era apenas uma questão de semanas até ele falar com o pai e as nossas famílias chegarem a um acordo para noivarmos. Achava que o pai aprovaria o casamento. Ele queria que eu fosse feliz, mas também tinha aspirações à nobreza e Ramón Salazar tinha sangue nobre. Meu pai tinha consciência da sua posição na sociedade, e uma aliança com Ramón Salazar aumentaria ainda mais sua reputação. Na Primavera do ano seguinte, houve de facto um casamento. Mas não foi para o meu matrimónio com Ramón que tendas foram montadas no terreno da nossa fazenda, grinaldas de flores penduradas sobre as portas da casa, mesas compridas postas com toalhas de linho branco e copos cintilantes e um padre chamado para realizar a cerimónia. Foi para o meu pai. Meu pai e a sua nova esposa, a condessa Lorena de Braganza.

Antipatizei com ela desde o momento em que a vi; aquela condessa com seus olhos brilhantes e língua minúscula que dardejava entre dentinhos. Uma língua tão afiada quanto um alfinete, e olhos que incomodavam e espreitavam. Uma língua que nunca ficava parada por muito tempo e se ocupava com comentários maliciosos e sugestões dissimuladas. Olhos que perambulavam pelos nossos ornamentos e prataria, calculando seu valor e avaliando o preço de tudo o que viam. Os vestidos que usava tinham um decote baixo para expor o volume do seu colo, e ela se inclinava à frente e gargalhava quando homens que estavam na sua companhia falavam, mesmo que os seus comentários não fossem nem um pouco divertidos. De minha parte, ficava sentada, olhando-a, pois ela dizia as coisas mais tolas que eu já tinha ouvido.

Eu não queria que ela se casasse com meu pai. Eu não a queria em minha casa. Na noite em que seu noivado foi anunciado, ela veio ao meu quarto para falar comigo e percebi que usava o colar de coral de minha mãe. O colar que minha mãe prometera que eu teria no meu aniversário de 16 anos. Isto é meu! Arranquei-o do pescoço dela. O fecho se quebrou, e as contas saíram voando, caíram e rolaram pelo chão. Ela gritou, e sua criada e meu pai vieram correndo. Socorro, choramingou, segurando o pescoço. Zarita teve um ataque e me arranhou. Tirou as mãos para revelar um vergão vermelho brilhante no pescoço. Perdi o fôlego. Ela pressionara as próprias unhas no pescoço para fazer a marca! Eu não fiz isso, garanti a meu papa. Zarita, precisa se desculpar imediatamente, ordenou ele. Fiquei num silêncio mal-humorado. Imediatamente!, repetiu papa. Ou vou trancá-la no seu quarto até se desculpar. Murmurei uma desculpa, mas, quando meu pai saiu, disse a Lorena: você mesma fez essa marca. Para minha surpresa, ela não negou minha acusação. Gesticulou para a sua criada sair e disse: não deveria se queixar, pois emprega os mesmos métodos para ganhar atenção. Não sei do que está falando. Claro que sabe. Olhou-me atentamente. Eu vi você saindo da igreja no dia em que o mendigo supostamente a agrediu. Ele me tocou mesmo, falei em voz baixa, pois aquele era um dia que eu preferia esquecer.

Ah, eu sei disso. Ouviram você dizer. Lorena sorriu, e não foi um sorriso amistoso. Ele me tocou, imitou minha voz. Aquele homem realmente me tocou. Recuei diante dela. Como sabia o que eu dissera no interior da igreja de Nossa Senhora das Dores? Todos acreditam que o mendigo a atacou, prosseguiu Lorena, mas seu corpete não estava rasgado, nem seu vestido ficou danificado de modo algum. O que o pobre homem tentou fazer? Pegar um centavo da sua bolsa ou arrancar o dinheiro da sua mão antes que o colocasse na caixa para os padres? Boa sorte para ele, digo eu. Falei com o janota que supostamente devia ser seu protector, Ramón Salazar, e descobri o que aconteceu. Esperava que Ramón se contentasse em sustentar o fingimento da agressão..., ele pareceria mais homem por se ter lançado na sua defesa. Mas foi você, Lorena se aproximou e ciciou no meu rosto, você, com a sua petulância mimada, que causou o enforcamento de um homem porque ele encostou na sua mão. Caí para trás diante do seu ataque violento, a verdade das suas palavras despindo a minha alma e deixando-me nua. Portanto, não me venha com afectações, minha cara senhorita santinha. Tem de conviver com as suas próprias falsidades e as consequências dos seus actos. Lorena ergueu as saias para sair. Um homem inocente está morto. E seu filho também, muito provavelmente». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,