Rio Nabão, Março de 1120
«(…) A mulher vestida de negro
estava longe do local onde normalmente vivia escondida, em Soure. Daquela vez,
descera até Santarém, pela estrada principal, e agora regressava por caminhos
junto às margens do Nabão. Não tinha pressa e desejava apenas conhecer o território,
um dia poderia precisar de se esconder ali. Há quatro anos que chegara a
Coimbra, na peugada das tropas de Ali Yusuf, cumprindo o destino que impusera a
si própria. Desde os tempos conturbados da serra Morena aprendera a viver na
floresta, alimentando-se de vegetais e frutos, ou de animais que caçava com
armadilhas, e sempre pensara que iria terminar os seus dias por lá. Mas um dia,
Taxfin, governador de Córdova e grande guerreiro, decidira participar com o
califa numa expedição ao Oeste, e levara a esposa, Zulmira, e as duas meninas,
Fátima e Zaida. Naturalmente, a mulher de negro seguiu-as. O primeiro cerco a
Coimbra durara pouco, mas a desgraça acontecera aquando do seu levantamento. As
carroças onde viajavam as três mouras tinham sido apanhadas pelas tropas de dona
Teresa. A mulher de negro tentara avisá-las, desesperada, mas não conseguira.
As tropas de Ali Yusuf partiram e,
durante um ano, ela permanecera nos arrabaldes da cidade cristã, sabendo que as
mouras, embora prisioneiras, se encontravam bem. Durante esse Inverno,
descobrira a povoação de Soure, que fora arrasada. O castelo estava abandonado,
a torre tombada e, como ninguém lá vivia, escolheu aquela povoação desalmada
para se instalar, no que foi imitada pelas feras. Ursos, lobos e cães bravios,
todos lá iam farejar os despojos, e ela sentia-se bem no meio deles, e aprendeu
a viver sem os temer ou provocar.
No Verão seguinte, para resgatar
a sua família, Taxfin conseguira convencer o califa Ali Yusuf a voltar a
Coimbra. A mulher de negro mantivera-se atenta e, durante vinte dias, espiara
os movimentos das tropas, para ver se elas libertavam as três mouras. Porém, e
inesperadamente, o califa mudou outra vez de ideias. Havia doentes entre as
tropas, e Ali Yusuf não só levantou o cerco, como mandou matar os infectados, e
a mulher de negro viu à distância um homem vestido de branco degolar mais de
trinta inocentes, à beira do Mondego. Nessa tarde, depois de ajudar um
rapazito, filho de um almocreve, cujo pai fora morto pelo carniceiro branco,
regressara a Soure espantada, sem compreender as razões por que Ali Yusuf
voltara a retirar, um ano depois, sem sequer atacar Coimbra. Mas, como as
mouras não haviam sido libertadas, permaneceu por lá. Três anos haviam já
passado e nenhuma expedição muçulmana voltara a fustigar o Mondego. A mulher de
negro soubera, em Santarém, que Ali Yusuf andara pelo Leste da Península,
acompanhado de Taxfin, e que depois regressara aos desertos africanos, para
combater as tribos berberes revoltadas.
Não havia qualquer notícia de que
estivesse a preparar uma invasão do Oeste e por isso sentia-se mais à vontade
para se afastar de Coimbra. Porém, havia outros riscos nestas viagens. O seu
aspecto devia meter medo, já por diversas vezes lhe tinham chamado bruxa e
alguns lavradores haviam-na apedrejado. Apesar dos seus conhecimentos de magia
e feitiçaria, ela não se considerava a si própria uma bruxa, apenas uma louca.
As verdadeiras bruxas não eram loucas, mas ela limitava-se a ser uma doida com
truques, que normalmente resultavam mal. Fosse como fosse, os outros temiam-na
e foi por isso que inicialmente se afastou daquele eremitério.
Na margem do Nabão, perto das ruínas
de uma abandonada povoação romana, dera com aquela pequena construção de
granito, no meio da floresta. Em vez de caminhar na sua direcção, decidiu
contorná-la à distância. Os eremitas cristãos que viviam abaixo do Mondego eram
corajosos, mas também demasiado religiosos para aceitar uma bruxa vestida de
negro. Acusá-la-iam de blasfémias e heresias, e rezariam ao seu Deus para que a
levasse, por isso se afastou. De repente, ouviu um gemido e estacou. Voltou a
observar o eremitério e o som repetiu-se. Alguém estava a morrer ali. Olhando à
volta para ver se ninguém aparecia, aproximou-se. À entrada do edifício sem
porta, espreitou lá para dentro. Limitava-se a uma sala fria e quase quadrada,
com uma mesa de pedra no centro, um altar do seu lado direito e, num dos
cantos, um pequeno forno, onde se viam umas brasas de carvão». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,