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Efémera
«(…) Na verdade,
viria mais tarde a preferir imaginá-la enfrentando o todo-poderoso ministro de
dom José I do que a escrever poemas; embora conseguisse melhor idealizá-la a
usar a pena criativa do que a espada de lâmina crua de gume afiado. E volvia-me
de novo para o Tejo, como se por um passe de mágica fosse encontrar nas suas águas
turvas os bergantins reais, as naus, as corvetas, as galeotas, que na época
dela aportavam ao Cais das Colunas. Essa
nossa avó dos poemas também vinha aqui só para tentar alcançar o horizonte,
tornava minha mãe divagando, os olhos azul-pavão repletos da incandescência
da tarde irisada pelo sol a espelhar-se nas vidraças das janelas, nas fachadas
do largo com os seus passeios perdidos por dentro da obscuridade das arcadas,
espécie de corredores largos onde se anteviam vultos de mulheres a caminharem
numa pressa recolhida, de quem se sente ameaçado, assustado.
Inseguras.
Imprudente, debruçava-me
mais, na esperança de ver despontar ao longe as flâmulas das fragatas, as corvetas,
as barcaças na sua madeira batida, trabalhada e gasta pela ondulação e pelo sal
do mar, que perto da Torre de Belém se vem misturar com a doce água fluvial,
mas apenas encontrando, desconsolada, o rasto dos cacilheiros na sua travessia
laboriosa e lenta. Imitações pobres daqueles outros barcos, que me entretinha a
recriar enquanto não adormecia, tal como a praça fervilhante de comércio,
atravessada pelos cães vadios, as anões e os mendigos, as carruagens e as
cadeirinhas de cortinas em veludo misteriosamente corridas, a ocultarem
fidalgas e padres, quem sabe se em incursões clandestinas. Terreiro do Paço
onde embarcavam e desembarcavam as damas da Corte e as fadas, com o pesado
cabelo entrançado de pérolas descaindo sobre a nuca humedecida por um suor febril
e inquieto.
E desse modo,
julgava terem sido a rainha dona Maria e a sua nora, a infanta espanhola
Carlota Joaquina, que à socapa da Corte ia à praia de Belém molhar os pés de
rapariguinha agreste e desavinda com o destino que a tirara de Espanha, a
contragosto chegada a Portugal que até ao fim dos seus dias iria odiar.
Hostil.
Acocorada no banco
de pedra escorregadia, esquecia-me das horas, ao contrário da minha mãe, que com
frequência subia a manga do vestido leve, a ver o relógio que lhe deslizava no
pulso magro. E se eu a agarrava pretendendo retê-la, demorá-la, sacudia-me
nervosa, a boca crispada de sede e de calor.
De impaciência.
Anda!, dizia, a puxar-me. E eu
acabava por pular para o chão que ali era de terra batida, a segui-la tentando
acertar o meu passo miúdo pelo passo alado dela, espaço oscilante delineado
pelas suas esguias pernas bronzeadas, longas e nuas.
Vulnerável e débil.
Vem!, quase gritava, numa súbita urgência, a exigir
que a seguisse mesmo se a contragosto, consciente de quanto me custava partir
daquele vão de sonho, para mim tão mágico, trespassado pelo grito das gaivotas,
povoado pelo equívoco odor ácido a águas escusas, musgo e limo, salpicados de cheiros
salgados, amarescentes, numa mistura de verdete e zinco, que eu tentava aflorar
com a ponta da língua, arrastando o andar. Até que ela se zangava, enfastiada
da minha companhia relutante, a atrasá-la para onde, numa repentina ansiedade,
se dirigia praticamente correndo.
Anda!, tornava a minha mãe em tom cortante e breve,
mas já parando diante de cada montra nas quais nos reflectíamos, e eu me perdia
na sua imagem alvacenta de loura. E deste modo avançávamos, demorando a nossa
chegada ao Rossio, que eu detestava, tentando iludir o choro mal contido,
obstinada, a sentir já a falta dos minutos de intimidade passados uma com a
outra diante do rio. Lugar a ser substituído pelo parco fascínio iridescente
dos repuxos das fontes das mulheres, como então lhes chamava, despidas sob a água
que lhes corria pelo corpo e pelas faces de bronze.
Gotas, como se
fossem lágrimas.
Mesmo assim eu
persistia na demora, teimando em atrasar os pés calçados com as sandálias novas
de tiras cruzadas; soltando os dedos do entrançamento dos dela, como se
quisesse perder-me lá atrás, por entre as pessoas que iam e vinham apressadas, e
ela não dando pela minha ausência seguia, enquanto eu me ocultava por trás
fosse do que fosse, a espiá-la, coração aos saltos no peito liso, amarfanhado
pelo pavor de que me tivesse esquecido para sempre.
Em desordem.
E ao vê-la
finalmente dar por falta de mim, aflita, a boca entreaberta num grito mudo mas descontrolado,
corria arrependida, esgueirando-me de onde estava, voando até aos seus braços
que encontrava fechados ao meu alvoroço. E se contrita me agarrava ao seu corpo
tépido, de imediato me empurrava, áspera e desprendida, como se sufocasse: deixa-me, deixa-me!
Então eu afastava-me ainda arrebatada e, com o intuito de castigá-la,
arreliava-a rogando, sonsa, na lamúria de fala: podemos tornar ao rio, podemos, podemos? Mas em silêncio ela
empurrava-me à sua frente, a contornarmos por fim os cestos de verga cheios de rosas
das floristas, onde os odores, os perfumes das flores se enleavam em treliças
de cores e tons, pouco antes de chegarmos à Pastelaria Suíça onde, sem me
dirigir a palavra, se sentava na esplanada comigo ao lado a fazer sentir-me
invisível, e encomendava ao criado um refresco de chá, que vinha com gelo e
hortelã num copo esguio e alto, enquanto, distraída com a sua beleza, eu
deixava derreter o sorvete de chocolate e baunilha na pequena taça de metal
redonda e embaciada pelo frio. O
que estás a fazer? Pareces parva!, ralhava desatenta, sem se aperceber das figas
que eu fazia por baixo da mesa, repetindo para mim mesma: não vem! Ele não vem hoje, não vem!, dando-me
conta ao mesmo tempo da estranha expressão ansiosa da minha mãe, que sem cessar
buscava em torno, primeiro ensimesmada, mas logo sobressaltada e obsessiva». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, Saber,