«(…) Talvez devesse ter sido óbvio para mim onde aquilo tudo ia acabar. Num mundinho minúsculo e fechado de jornalismo estudantil, eu tinha anunciado como soldado estagiário da Guerra Fria. Agora deve parecer óbvio. Afinal de contas, era Cambridge. Senão, por que eu estaria contando sobre essa reunião? Na época o encontro não teve significado algum para mim. Nós estávamos a caminho da livraria e acabamos tomando um chá com o orientador de Jeremy. Nada de muito estranho nisso. Os métodos de recrutamento naqueles dias estavam mudando, mas só um pouquinho. O mundo ocidental podia estar em constante transformação, os jovens podiam achar que tinham descoberto um jeito novo de conversar, as pessoas diziam que as velhas barreiras estavam desmoronando. Mas a famosa conversa ao pé do ouvido ainda era empregada, talvez com uma frequência menor, talvez com uma pressão menor. No contexto universitário certos catedráticos continuavam procurando material promissor e passando nomes para futuras entrevistas. Certos candidatos aprovados nos exames para o funcionalismo ainda eram chamados a um canto para dizerem se por acaso já tinham pensado em outro departamento. Em geral as pessoas recebiam uma proposta discreta depois de estarem há alguns anos na vida profissional. Ninguém precisava dizer com todas as letras, mas o passado continuava sendo importante, e ter o bispo no meu lado não era uma desvantagem. Já se comentou muitas vezes o quanto demorou para que os casos de Burgess, Maclean e Philby derrubassem a ideia de que certas classes de indivíduos tinham mais chance de serem leais ao seu país que as outras. Nos anos 1970 essas famosas traições ainda ecoavam, mas os velhos métodos de recrutamento estavam firmes.
Em
geral, tanto a conversa quanto o ouvido eram de homens. Não era normal que uma
mulher fosse abordada dessa maneira conhecidíssima e tradicionalíssima. E
embora fosse absolutamente verdade que Tony Canning acabou me recrutando para o
MI5, os motivos dele eram complicados e ele não tinha nenhuma sanção oficial.
Se o facto de eu ser nova e atraente era importante para ele, demorou um pouco
para que todo o páthos dessa situação se revelasse. (Agora que o espelho
já conta uma história diferente, eu posso dizer de uma vez. Eu era bonita mesmo.
Mais que isso. Como o Jeremy escreveu numa rara carta mais efusiva, eu era até
bem linda. Na verdade, estupenda). Nem os figurões de barba grisalha no quinto
andar, com quem eu nunca falei e a quem raramente vi no meu breve período na
Inteligência, tinham ideia do motivo de eu ter sido enviada a eles. Eles tinham
os seus palpites, mas nunca iriam imaginar que o professor Canning, ele mesmo
um ex-membro do MI5, achava que estava lhes dando um presente, num espírito de expiação.
O caso dele era mais complexo e mais triste do que qualquer um sabia. Ele ia
mudar a minha vida e agir com generosa crueldade enquanto se preparava para
embarcar numa jornada que não tinha esperança de volta. Se sei tão pouco ainda
hoje sobre ele é porque o acompanhei apenas num trecho muito curto do caminho.
O meu caso com Tony Canning durou poucos meses. De início eu estava saindo também com Jeremy, mas no fim de Junho, depois das provas finais, ele se mudou para Edimburgo para começar um doutoramento. A minha vida ficou menos tensa, embora eu ainda me torturasse por não ter descoberto o seu segredo antes de ele ir embora e por não ter podido satisfazê-lo. Ele nunca tinha reclamado nem se lamentado. Algumas semanas depois ele escreveu uma carta carinhosa e cheia de arrependimento para dizer que, ao assistir a uma apresentação de um concerto para violino de Bruch no Usher Hall, tinha-se apaixonado por uma nova estrela de Düsseldorf, com um timbre magnífico, especialmente no movimento lento. Seu nome era Manfred. Claro. Se eu tivesse pensado de um jeito um pouquinho mais antiquado, teria adivinhado, pois houve um tempo em que todos os problemas sexuais dos homens tinham um único motivo.
Que
coisa mais conveniente. O mistério estava resolvido e eu podia parar de me
torturar com a felicidade do Jeremy. Ele estava preocupado, que amor, com os
meus sentimentos, chegando até a se oferecer para vir me explicar tudo. Eu
escrevi para lhe dar os parabéns, e me senti madura ao exagerar o meu deleite
para deixá-lo feliz. Essas ligações só eram legais havia cinco anos e para mim
eram uma novidade. Eu lhe disse que ele não tinha porque vir até Cambridge, que
eu sempre lembraria dele com muito carinho, que ele era o mais doce dos homens,
e que eu queria muito conhecer o Manfred um dia, por favor vamos manter-no em
contacto, Tchau! Queria agradecer por ele ter-me apresentado o Tony, mas não vi
porque levantar suspeitas. E também não contei ao Tony sobre o seu ex-aluno.
Todos sabiam tudo o que precisava saber para ficar feliz». In Ian McEwan,
Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.
Cortesia da CdasLetras/JDACT
JDACT, Ian McEwan, Literatura, Narrativa,