O malogro dos estudos bíblicos
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A despeito dos problemas actuais de superpopulação, o Vaticano ainda é capaz de
impor restrições ao controle da natalidade e ao aborto, por razões não sociais
ou morais, mas teológicas. Um incêndio causado por um raio em York Minster
ainda pode ser visto como sinal da ira divina, por causa da nomeação de um
bispo duvidoso. As afirmações ambíguas desse bispo sobre aspectos da biografia
de Jesus ainda podem ultrajar pessoas que crêem que o seu salvador foi
concebido numa virgem pelo próprio Espírito Santo e se recusam a acreditar em
qualquer outra coisa. Em comunidades dos Estados Unidos, grandes obras literárias
podem ser banidas de escolas e bibliotecas, ou até, eventualmente, queimadas,
por contestarem descrições bíblicas tradicionais, enquanto uma nova corrente do
fundamentalismo é efectivamente capaz de influenciar a política do país graças
ao apoio de milhões de pessoas ansiosas por se extasiar num céu bastante
parecido com a Disneylândia. Por menos ortodoxa que seja a sua apresentação de
Jesus, A última tentação de Cristo,
de Kazantzakis, é uma obra apaixonadamente religiosa, apaixonadamente
devota, apaixonadamente cristã. Isso não impediu, porém, que o romance fosse proibido
em muitos países, entre os quais a Grécia, pátria do autor, e que o próprio
Kazantzakis fosse excomungado. Entre as obras não ficcionais, The Passo ver Plot, de
Schonfield, embora tenha vendido enormemente, provocou muita indignação. Em
1983, David Rolfe, a serviço da London Weekend Television e do Channel 4, começou
a planear um documentário em três partes intitulado Jesus: the Evidence. A série não tomava nenhuma posição
própria, não endossava nenhum ponto de vista particular. Pretendia simplesmente
dar uma visão do campo dos estudos sobre o Novo Testamento e estimar o valor
das várias teorias propostas. No entanto, antes mesmo que o projecto começasse
a ser executado, grupos de pressão britânicos já faziam lobby para que fosse
suspenso. Quando a série foi concluída, em 1984, teve de ser exibida em sessão
privada para vários membros do Parlamento, antes de ter a sua transmissão
liberada. Depois, embora as críticas subsequentes a tenham considerado
perfeitamente equilibrada e incontestável, clérigos da Igreja da Inglaterra
foram a público declarar que estariam de prontidão para atender a quaisquer
membros de sua congregação perturbados pelo programa.
A intenção de Jesus: the Evidence fora
levar ao conhecimento do público leigo alguns avanços feitos nos estudos do Novo
Testamento. Afora The Passo ver
Piot, praticamente nada desses estudos chegara à consciência
popular. Umas poucas obras, como Jesus
the Maoidan e The
Gnostic Gospeis, tinham sido amplamente resenhadas,
discutidas e difundidas, mas sua leitura se limitara em grande parte a pessoas
especialmente interessadas no tema. A maior parte do trabalho realizado nos últimos
anos só atingiu especialistas. Em grande medida, esses trabalhos são também
escritos especificamente para especialistas, sendo praticamente impenetráveis
para o leitor não iniciado. No que diz respeito ao grande público, bem como às
igrejas que atendem a esse público, tudo se passa como se as obras acima
citadas jamais tivessem sido produzidas. A versão de George Moore de que Jesus
teria sobrevivido à crucificação fazia eco a uma tese sustentada não apenas por
algumas das mais antigas heresias, mas também pelo Corão, sendo portanto amplamente
aceita no islão e no mundo islâmico. No entanto, essa mesma afirmação, quando
divulgada por Robert Graves e depois pelo dr. Schonfield em The Passo ver Piot, provocou
tanto escândalo e incredulidade como se isso jamais tivesse sido aventado
antes. No campo dos estudos sobre o Novo Testamento, é como se cada nova
descoberta, cada nova afirmação, fosse anulada com a mesma rapidez com que é
feita. Cada uma tem de ser constantemente reapresentada, só para desaparecer novamente.
Muita gente reagiu a certas afirmações do nosso próprio livro como se The Passo ver Piot ou King Jesus, de Graves, ou The Brook Kerith, de Moore,
ou até o próprio Corão, nunca tivessem sido escritos.
Esta é uma situação extraordinária,
talvez única em todo o espectro da pesquisa histórica moderna. Em todas as
demais esferas da investigação histórica, novos dados são admitidos. Podem ser
contestados. Pode haver tentativas de suprimi-los. Podem também ser digeridos e
assimilados. Mas pelo menos as pessoas sabem o que já foi descoberto, o que já
foi dito vinte ou setenta anos atrás. Há uma espécie de progresso genuíno,
mediante o qual velhas descobertas e teses fornecem base para novas descobertas
e teses, dando origem a um corpo de conhecimento. Teorias revolucionárias podem
ser aceitas ou descartadas, mas pelo menos se toma conhecimento delas e do que
as precedeu. Existe um contexto». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry
Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN
978-852-090-568-5.
Cortesia de ENFronteira/JDACT
Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, JDACT, Literatura, Religião, Crónica,