«(…) Esse julgamento conjugal era razoável. O prefeito de Verrières devia uma reputação de espírito e principalmente de bom-tom a meia dúzia de gracejos que herdara de um tio. O velho capitão de Rênal servira, antes da Revolução, no regimento de infantaria do duque de Orléans, e, quando ia a Paris, era admitido nos salões do príncipe. Lá, tinha visto Madame de Montesson, a famosa Madame de Genlis, o sr. Ducrest, o inventor do Palais-Royal. Essas personalidades reapareciam com frequência nas anedotas do sr. de Rênal. Mas, aos poucos, essa lembrança de coisas tão delicadas de narrar tornara-se trabalhosa e, de uns tempos para cá, só nas grandes ocasiões ele repetia suas anedotas relativas à Casa de Orléans. Aliás, como era muito polido, excepto quando falava de dinheiro, consideravam-no, com razão, a personalidade mais aristocrática de Verrières.
Um Pai e um Filho
Realmente minha mulher tem muito tino!, dizia-se, no dia
seguinte às seis horas da manhã, o prefeito de Verrières, ao descer até à
serraria do velho Sorel. Embora tenha dito a ela, para conservar a
superioridade que me cabe, eu não havia pensado que, se não tomo esse padrezinho
Sorel que, dizem, sabe o latim como um anjo, o director do asilo, essa alma sem
repouso, poderia perfeitamente ter a mesma ideia e arrebatá-lo de mim. Com que
tom de suficiência ele falaria do preceptor de seus filhos!... Esse preceptor,
uma vez sendo meu, vestirá batina?
O sr. de Rênal estava absorto
nessa dúvida quando viu ao longe um aldeão, homem de cerca de 1,80 metro de
altura, que, já de manhãzinha, parecia muito ocupado em medir peças de madeira
depositadas ao longo do Doubs, no caminho da sirga. O aldeão não pareceu muito satisfeito
de ver aproximar-se o sr. prefeito, pois suas peças de madeira obstruíam o
caminho e era contravenção depositá-las ali. O velho Sorel, pois era ele, ficou
muito surpreso e ainda mais contente com a singular proposta que o sr. de Rênal
lhe fazia para o seu filho Julien. Mesmo assim, escutou-o com aquele ar de
descontentamento e desinteresse que a sagacidade dos habitantes dessas montanhas
sabe empregar tão bem. Escravos do tempo da dominação espanhola, eles conservam
ainda esse traço de fisionomia do felá egípcio.
A
resposta de Sorel não foi a princípio senão a longa recitação de todas as fórmulas
de respeito que sabia de cor. Enquanto repetia essas vãs palavras, com um
sorriso canhestro que aumentava o ar de falsidade e quase de patifaria natural à
sua fisionomia, o espírito activo do velho aldeão buscava descobrir que razão
podia levar um homem tão considerável a levar para sua casa o malandro do seu
filho. Ele estava muito descontente com Julien, e era por ele que o sr. de Rênal
lhe oferecia o pagamento inesperado de 300 francos por ano, com comida e mesmo
vestuário. Essa última pretensão, que o velho Sorel tivera o génio de lançar na
hora, também fora concedida pelo sr. de Rênal. Esse pedido perturbou o
prefeito. Se Sorel não está encantado e satisfeito com minha proposta, como
naturalmente deveria estar, não há dúvida, pensou, que lhe fizeram ofertas de outro
lado; e de quem podem vir, senão de Valenod? Em vão o sr. de Rênal instou Sorel
a concordar ali mesmo: a astúcia do velho aldeão recusou-se teimosamente a
isso; ele dizia querer consultar o filho, como se, na província, um pai rico
consultasse um filho que nada possui, apenas por formalidade». In
Stendhal, O Vermelho e o Negro, 1830, Edição Relógio D'Água,
2010, ISBN 978-989-641-115-2.
Cortesia de ERelógioD’Água/JDACT
JDACT, Stendhal, Literatura, França,