No Tempo do Arcebispo Teotónio de Bragança (1578-1602)
«(…) Nesse sentido, a figura do
Arcebispo dom Teotónio de Bragança mostra, como aliás já acentuava o seu
capelão, e atento biógrafo, padre Nicolau Agostinho, um originalíssimo perfil
de prelado imbuído de intuitos renovadores, dentro do que podiam ser os preceitos
de abertura e adaptação da Igreja contra reformista. Este aspecto da sua
biografia, o do teólogo e homem da Igreja, está, no essencial, bem estudado
através de uma série de contribuições incontornáveis. Um dos dois textos
sinodais que redigiu, datado de 1587, foi justamente dedicado à plena adequação
das paróquias eborenses às normas e decretos conciliares. Em termos de
intervenção social conhece‑se, por exemplo, o seu importantíssimo papel durante
os surtos de peste e fome que o Alentejo sofreu, designadamente em 1579‑1581, quando
criou uma série de espaços assistenciais e albergarias e proveu as necessidades
elementares dos carenciados, na cidade e nas vilas e aldeias. Neste campo,
seguiu uma precisa orientação tridentina, olhos postos no exemplo assistencial
do cardeal Carlos Borromeo durante a peste de Milão, sabiamente adaptado à realidade
nacional, numa resposta muito directa à forma como a Coroa tinha organizado o
campo, preenchendo os espaços deixados abertos pelo poder político. Nesse
sentido também se entendem os contactos com Miguel Giginta, autor do Tratado de Remedio de Pobres (Coimbra,
1579), que defendia um modelo inovador de casas da caridade, razão pela qual
chegou a ser chamado a Évora pelo Arcebispo, que lhe ofereceu a oportunidade de
desenvolver na cidade o projecto que Lisboa recusara. Esse projecto foi seguido
em Évora à luz das circunstâncias e possibilidades existentes.
Mas observam‑se outros aspectos
relevantes a considerar na acção do Arcebispo, entre eles o do mecenas das
artes e das letras, campos em que dom Teotónio de Bragança investiu muito do
seu saber e réditos, tornando a cidade de Évora o mais importante centro da
Contra‑Reforma portuguesa, logo a seguir a Lisboa, o que urge ser analisado com
a devida atenção. O seu mecenato renovador no campo construtivo e de decoração
artística eborense não se restringiu a obras de eleição como foram os Mosteiros
de Scala Coeli, primeira
sede portuguesa de monges cartuxos, e de Santo António da Piedade, casa de
franciscanos capuchos, ambos muito conhecidos e bem estudados pelos historiadores.
Também não se limitou a custear obras nas paróquias da cidade e a reunir na sua
colecção centenas de livros e muitas peças de arte, entre elas alguns
testemunhos do seu interesse pelos novos mundos. Durante os vinte e três anos de
governo daquela que era uma das maiores Arquidioceses de toda a Cristandade, o
ilustrado epíscope preocupou‑se também em assinalar e recuperar o património
paleo‑cristao existente no seu território, em definir estratégias de restauro storico desses
acervos segundo as directrizes romanas de autores como o cardeal Cesare
Baronio, e em organizar os programas de decoração sacra das igrejas dentro dos
princípios romanos promulgados na Roma
Felix e que foram dominantes durante o pontificado de Sisto V
(1585‑1590).
Essas
linhas caracterizadoras de desenvolvimento da Évora teotonina assinalam um
caminho que, em reacção aos ataques da Reforma protestante, atestou as
valências da antichità christiana
do seu historial, reforçada pela afirmação de santos eborenses cujo culto se recuperou, ou pela
primeira vez se instalou, como são os casos de São Manços, de São Jordão e das
suas irmãs Santas Comba e Inonimata, dos santos mártires Vicente, Sabina e Cristeta,
de São Torpes, de São Cucufate, de São Brissos, de São Romão e de outros
mártires com alegadas origens ou ligações alentejanos durante a era paleo‑cristã,
em parte já assinalados nos textos dos humanistas, como o celebérrimo livro de
André Resende Historia da Antiguidade de Cidade de Evora (cuja primeira
edição data de 1553). À luz do princípio da concinnitas promulgado pelo arquitecto quatrocentista
Léon Battista Alberti, uma busca da harmonia clássica muito seguida nos textos
e na prática de Resende em nome da salvaguarda do património da cidade, os
pretensos santos fundadores do cristianismo no Alentejo foram nesta altura alvo
de novas investigações, por vezes através de campanhas arqueológicas, e de uma
verdadeira política de reabilitação construtiva dos lugares hierofânicos relacionados
com os seus martírios e os seus focos de devoção popular». In Vitor Serrão, Arte Religião e
Imagens em Évora, No Tempo do Arcebispo Teotónio de Bragança (1578-1602), 2015,
Fundação Casa de Bragança, 2015, ISBN 978-989-691-361-8.
Cortesia da FCdeBragança/JDACT
JDACT, Vitor Serrão, Cultura e Conhecimento, Caso de Estudo, Évora, História,