A Velha Senhora dos Canários
«(…)
Se não fosse o ancestral respeito que nos tolhe familiaridades diante dos
grandes deste mundo, chamaríamos marquesas àquelas varandas cobertas e envidraçadas
que geralmente os arquitectos instalam nas traseiras dos prédios, concluindo
assim o perímetro isolador das casas e facilitando, quantas vezes, a resolução
dos problemas de dormida da criada ou de um parente que veio da província. Mas
as marquesas, agora poucas e de pouca influência para fora dos círculos intangíveis
da sociedade, ainda transportam consigo o prestígio dos tempos em que marquês
era logo abaixo de duque, e este a seguir a rei. Por isso, chamamos àquelas
varandas marquises, que significa o mesmo, mas disfarçado de francês. Realmente
não seria correcto dizer, em casa de marquesa, que a marquesa estava mal
arrumada ou a precisar de espanador: põe-se no lugar da marquesa a marquise, e
é logo como quem fala doutra coisa. As palavras têm destas habilidades.
Mal me viria, porém, e mal-empregado
o espaço desta página, se hoje me desse só para falar de tais coisas. A
marquise não é mais do que uma varanda protegida do sol e da chuva, e as
marquesas, se vivem, vivem nas salas da frente, sem nada terem que ver com
estes canários que, na marquise, começam justamente agora a dar sinal da sua
presença. Um deles tem a asa esquerda ligeiramente descaída, pesa-lhe, e
inclina a cabeça de modo a ver-me melhor. Olho-me miniaturizado no círculo
brilhante que de vez em quando se cobre, de baixo para cima, com uma rápida
pálpebra acinzentada. Meto um dedo entre os arames da gaiola e suporto as bicadas
débeis com que a ave recebe a invasão. Irá esvoaçar assustada quando a mão
inteira pairar lá dentro, como um dragão. Então o coração agita-se aterrorizado
e as asas atiram pancadas contra os arames. E se a mão se transforma em ninho e
envolve a ave como um casulo, o contacto dá-lhe calma, embora interrompida por
sobressaltos pouco convictos. O outro canário é mais novo. Prefere o poleiro
alto, ou o baloiço, e ali, de cabeça erguida, fazendo oscilar bruscamente as
penas longas da cauda, tem a vida toda à sua frente, e sabe-o. Se repito a
manobra de introduzir os dedos pelos arames, dispara uma bicada única,
violenta, e afasta-se ao longo do poleiro, com o ar de ter ganho a batalha logo
na primeira escaramuça. Se fosse uma pessoa, diria dele que não dá confiança.
Tão sensível ao medo como o companheiro, exprime-o lutando a frio. E se o
agarro, sacode-se sem parar, inconformado. Logo que se apanha a salvo, atira um
grito de cólera enquanto espaneja as penas desalinhadas.
Não vai mais longe a minha relação
com estas aves. Uma ou duas vezes por semana dou-lhes meia dúzia dos meus
segundos, distraidamente. Sei que não me estimam nem respeitam, sobretudo desde
o dia em que vi a dona dos canários tratar deles, com gestos tão firmes e
serenos, que as aves não esvoaçavam: limitaram-se a mudar de lugar, também
serenamente, permitindo que a mão rugosa e sábia retirasse o comedouro e o
bebedouro de faiança branca e os repusesse frescos e cheios, com os mesmos
gestos sossegados. E a porta das gaiolas fechou-se com um pequeno estalido de
mola protectora. Por isto que vi, posso imaginar certas horas na casa
silenciosa. A dona dos canários vive sozinha. É já muito velha, mas firme como
os seus gestos, e anda sem ruído, calma, eficiente. Tem quase sempre um fito,
um pequeno trabalho que a ocupa, mas, com tanta idade, tem também horas de
pausa, que seriam repouso se não fossem antes contemplação de um passado que se
amplia constantemente, abrangendo, além da vida própria, também as múltiplas
vidas que por muito ou pouco tempo interferiram na sua.
Então, a senhora dos canários vai
sentar-se numa cadeira da marquise, com as mãos abandonadas no regaço, meio
abertas e voltadas para cima como cascas de amêndoa, como barcas encalhadas.
Fica muito direita, enquanto as recordações começam a afluir em vagas mansas
que a submergem e escorrem por ela, pelos olhos brandos, pelas faces ainda
lisas entre os sulcos fundos das rugas, até caírem nas mãos que são como taças
de um jardim fechado. A casa, nestes momentos, parece cobrir-se de musgo. Um
dos canários lança um trinado tímido. O outro responde. E como na casa nada se
mexe e a senhora olha fixamente não se sabe o quê, as aves arremetem um canto
interminável, rio sonoro que alastrasse em mil braços numa planície de silêncio.
A senhora não se move. Talvez não ouça os pássaros, mas eles cantam, cantam,
cantam». ». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1969, Editorial Caminho, 1998,
ISBN 978-972-212-339-6.
Cortesia de ECaminho/JDACT
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