«(…) Disse à mulher que não se levantasse, que aproveitasse um pouco mais da manhã, e escorregou para o ar frio, para a humidade indefinível das paredes, dos puxadores das portas, das toalhas da casa de banho. Fumou o primeiro cigarro enquanto se barbeava e o segundo com o café, que entretanto aquecera. Tossiu como todas as manhãs. Depois vestiu-se às apalpadelas, sem acender a luz do quarto. Não queria acordar a mulher. Um cheiro fresco de água-de-colónia avivou a penumbra, e isso fez que a mulher suspirasse de prazer quando o marido se debruçou na cama para lhe beijar os olhos fechados. E ele sussurrou que não viria almoçar a casa. Fechou a porta e desceu rapidamente a escada. O prédio parecia mais silencioso que de costume. Talvez do nevoeiro, pensou. Reparara que o nevoeiro era assim como uma campânula que abafava os sons e os transformava, dissolvendo-os, fazendo deles o que fazia com as imagens. Estaria nevoeiro. No último lanço de escada já poderia ver a rua e saber se acertara.
Afinal havia uma luz ainda
cinzenta, mas dura e rebrilhante, de quartzo. Na berma do passeio, um grande
rato morto. E enquanto, parado à porta, acendia o terceiro cigarro, passou um
garoto embuçado, de gorro, que cuspiu para cima do animal, como lhe tinham
ensinado e sempre via fazer. O automóvel estava cinco prédios abaixo. Grande
sorte ter podido arrumá-lo ali. Ganhara a superstição de que o perigo de lho
roubarem seria tanto maior quanto mais longe o tivesse deixado à noite. Sem
nunca o ter dito em voz alta, estava convencido de que não voltaria a ver o carro
se o deixasse em qualquer extremo da cidade. Ali, tão perto, tinha confiança. O
automóvel apareceu-lhe coberto de gotículas, os vidros tapados de humidade. Se
não fosse o frio tanto, poderia dizer-se que transpirava como um corpo vivo.
Olhou os pneus segundo o seu hábito, verificou de passagem que a antena não
fora partida e abriu a porta. O interior do carro estava gelado. Com os vidros
embaciados, era uma caverna translúcida afundada sob um dilúvio de água. Pensou
que teria sido melhor deixar o carro em sítio onde pudesse fazê-lo descair para
pegar mais facilmente. Ligou a ignição, e no mesmo instante o motor roncou
alto, com um arfar profundo e impaciente. Sorriu, satisfeito da surpresa. O dia
começava bem.
Rua acima, o automóvel arrancou,
raspando o asfalto como um animal de cascos, triturando o lixo espalhado. O
conta-quilómetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua
estreita e ladeada de carros parados. Que seria isto? Retirou o pé do
acelerador, inquieto. Por pouco diria que lhe tinham trocado o motor por outro
muito mais potente. Pisou à cautela o acelerador e dominou o carro. Nada de
importância. Às vezes não se controla bem o balanço do pé. Basta que o tacão do
sapato não assente no lugar habitual para que se altere o movimento e a pressão.
É simples. Distraído com o incidente, ainda não olhara o marcador da gasolina.
Ter-lha-iam roubado durante a noite, como já não era a primeira vez? Não. O
ponteiro indicava precisamente meio depósito. Parou num sinal vermelho,
sentindo o carro vibrante e tenso nas suas mãos. Curioso. Nunca dera por esta
espécie de frémito animal que percorria em ondas as chapas da carroçaria e lhe
fazia estremecer o ventre. Ao sinal verde, o automóvel pareceu serpentear,
alongar-se como um fluido, para ultrapassar os que lhe estavam à frente.
Curioso. Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o
comum. Questão de boa disposição, esta agilidade de reflexos hoje, talvez
excepcional. Meio depósito. Se encontrasse um posto de abastecimento a
funcionar, aproveitaria. Pelo seguro, com todas as voltas que tinha de dar
nesse dia antes de ir para o escritório, melhor de mais que de menos. Este estúpido
embargo. O pânico, as horas de espera, em filas de dezenas e dezenas de carros.
Diz-se que a indústria irá sofrer as consequências. Meio depósito. Outros andam
a esta hora com muito menos, mas se for possível atestar. O carro fez uma curva
balançada, e, no mesmo movimento, lançou-se numa subida íngreme sem esforço.
Ali perto havia uma bomba pouco conhecida, talvez tivesse sorte. Como um
perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito,
voltou duas esquinas e foi ocupar lugar na fila que esperava. Boa lembrança.
Olhou o relógio. Deviam estar à
frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que o melhor seria ir
primeiramente ao escritório e deixar as voltas para a tarde, já cheio o depósito,
sem preocupações. Baixou o vidro para chamar um vendedor de jornais que
passava. O tempo arrefecera muito. Mas ali, dentro do automóvel, de jornal
aberto sobre o volante, fumando enquanto esperava, havia um calor agradável,
como o dos lençóis. Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato
voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora, e
recostou-se melhor no assento. O jornal não prometia nada de bom. O embargo mantinha-se.
Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos. Mas ele ainda dispunha de meio depósito
e não tardaria a tê-lo cheio. O automóvel da frente avançou um pouco. Bem Hora
e meia mais tarde estava a atestar, e três minutos depois arrancava. Um pouco
preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na
voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze
dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava restrições rigorosas. Enfim, do mal
o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou
passar primeiro por casa de um cliente, a ver se apanharia a encomenda?
Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de
dizer que passara hora e meia na bicha da gasolina quando lhe restava meio depósito.
O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou a rádio e
apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido
embargo. De repente, o carro deu uma guinada e descaiu para a rua à direita, até
parar numa bicha de automóveis mais pequena do que a primeira». In
José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN
978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,