«Tu estás no jardim de uma estalagem de Praga
E sentes-te muito feliz com uma rosa sobre a mesa
E observas em vez de escrever o teu conto em prosa
A cetónia que dorme no coração da rosa». In
Apollinaire
«Dos acontecimentos que relato nestas páginas não fui mais que uma testemunha entre outras, mais aproximado que a multidão de espectadores, mas tão impotente como eles. o meu nome, eu sei, foi mencionado nos livros, isso causou-me outrora um certo orgulho. Mas já não causa. A mosca da fábula podia exultar porque a carruagem chegou a bom porto; de que se teria ela vangloriado se a viagem tivesse acabado num precipício? Esse foi o meu papel, na verdade, o de um sonâmbulo supérfluo sem sorte. Pelo menos não fui nem lorpa nem cúmplice. Nunca andei atrás de aventuras, mas às vezes a aventura fez-me sair do covil. Se eu tivesse podido escolher, tê-la-ia confinado ao único universo que me apaixonou desde a infância e que, com oitenta e três anos devidamente festejados, me apaixona ainda sem descanso: os insectos, esses admiráveis liliputianos, resumos de elegância, de habilidade, de imemorial sabedoria. Tenho o hábito de esclarecer os meus interlocutores profanos de que não sou, de modo algum, um defensor dos insectos. Com os animais ditos superiores, que nós, os homens, cedo escravizámos e abundantemente massacrámos, de que triunfámos de uma vez para sempre, podemos permitir-nos doravante ser magnânimos. Não com os insectos. Entre eles e nós a luta prossegue, quotidiana, implacável, e nada autoriza a predizer que o homem sairá vencedor. Os insectos estavam nesta Terra bem antes de nós, continuarão lá ainda antes de nós, e quando pudermos explorar os planetas longínquos serão mais depressa os seus congéneres do que os nossos que lá encontraremos. Com o que nos sentiremos, penso eu, reconfortados.
Já o disse, não sou um defensor dos insectos. Mas certamente um dos seus tenazes admiradores. Como não o ser? Que criatura alguma vez destilou matérias mais nobres que a seda, o mel ou o maná do Sinai? Desde sempre, o homem esforça-se por copiar destes produtos de insectos a textura e o gosto. Que dizer também do voo da mosca vulgar? Quantos séculos nos serão ainda precisos para imitá-la? Sem falar da metamorfose de uma miserável larva. Eu poderia invocar uma infinidade de exemplos. Não é esse o meu propósito. Nas páginas que vão seguir-se, não é da minha paixão pelos insectos que se trata, mas justamente dos únicos momentos da minha vida em que me interessei com prioridade pelos humanos. A ouvirem-me, tornar-me-ão facilmente por um urso misantropo. Isso não seria propriamente verdade. Os meus estudantes conservam de mim a melhor recordação; os meus colegas não disseram excessivamente mal; às vezes fui sociável, sem exagero; até cultivei, em pousio, duas ou três amizades. Sobretudo terá havido Clarence, e depois Beatriz; mas delas voltarei a falar. Digamos, para resumir sem mentir, que raramente suportei os zumbidos das misérias quotidianas, mas que aos grandes debates do meu tempo prestei constantemente um ouvido novo. Amei até ao fim o século da minha juventude, os seus entusiasmos ingénuos, os seus ingénuos terrores à aproximação do milénio, ainda e ainda o átomo, e de novo a epidemia, depois esses buracos de Dárnocles por cima dos pólos. Foi um grande século, a meu ver o maior, talvez o último grande, foi o século de todas as crises e de todos os problemas; hoje, no século da minha velhice, só se fala de soluções. Eu pensei sempre que o Céu tinha inventado os problemas e o Inferno as soluções. Os problemas empurram-nos, maltratam-nos, fazem-nos perder as estribeiras, fazem-nos sair de nós próprios. Salutar desequilíbrio, é pelos problemas que todas as espécies evoluem; é pelas soluções que elas se entorpecem e extinguem. Será por um acaso que o pior crime da nossa memória se tenha intitulado solução, e final?
E tudo o que observo hoje à minha volta, esse planeta enfezado, soturno, obscurecido, este desfraldar de ódios, essa universal frialdade que tudo envolve como uma nova era glaciar..., não é o fruto de uma genial solução? Contudo o fim do milénio tinha sido grandioso. Uma embriaguês nobre, contagiosa, devastadora, messiânica. Nós acreditávamos todos que a Graça ia tocar pouco a pouco a Terra inteira, que todas as nações poderiam em breve viver na paz, na liberdade, na abundância. Doravante, a História não seria mais escrita pelos generais, pelos ideólogos, pelos déspotas, mas pelos astrofísicos e pelos biólogos. A humanidade saciada só teria como heróis os inventores e os que a divertiam. Eu próprio nutri durante muito tempo essa esperança. Como todos os da minha geração, eu teria encolhido os ombros se me tivessem predicto que tantos progressos morais e técnicos se verificariam reversíveis que tantas vias de comunicação voltariam a fechar-se, que tantos muros poderiam ressurgir, tudo isso por culpa de um mal omnipresente e contudo insuspeitado.
Porque odioso logro do destino o nosso sonho se desmantelou?
Como chegámos a isso? Porque fui obrigado a abandonar a cidade e toda a vida
civil? O que eu queria contar aqui, o mais fielmente, o mais escrupulosamente
possível, é a lenta eclosão do flagelo que nos envolve depois dos primeiros
anos do novo século, arrastando-nos nessa regressão sem precedente, parece-me,
tanto pela sua amplitude como pela sua natureza. Apesar do terror ambiente,
esforçar-me-ei por escrever até ao fim com serenidade. Neste instante, sinto-me
ao abrigo do meu antro de alta montanha, e a minha mão não treme nada por cima
deste velho repertório ainda virgem a que vou confiar os meus fragmentos de
verdade. Encontro até, na evocação de certas imagens do passado, uma alegria em
que a minha pessoa se compraz, a ponto de esquecer por momentos o drama que
presumidamente vou relatar. Não é uma das virtudes da escrita deitar horizontalmente
na mesma folha horizontal o fútil e o excepcional? Tudo readquire num livro a
espessura negligenciável da tinta achatada». In Amin Maalouf, O Século
Primeiro depois de Beatriz, 1992, Medialivros, Difel, 2008, ISBN
978-972-290-919-8.
Cortesia de Medialivros/Difel/JDACT
JDACT, Amin Maalouf, Literatura, Oriente,