Fazenda Bela Aliança. Março de 1893
«(…) Quem está ao pé do leito se
curva, une as mãos, se abraça, troca palavras com Maurice. Fragilizados pelo
meu fim próximo, vão encontrar reconforto nos gestos e palavras, fortificando o
mundo dos vivos. Tais ritos protegem os que ainda estão nele. Bruscamente
compreendi: como são importantes, uns para os outros, aqueles que seguem
vivendo. Não, não haverá milagre, nem vou sentar no caixão como fez a moça que julgavam
finada, na matriz de Nossa Senhora das Dores de Piraí. Fecharei os olhos para
sempre. Hoje mesmo. Agora, tudo escuro. Frio. Muito frio. O Senhor é meu
Pastor, nada me faltará. Mal consigo acompanhar as preces e mexo os lábios com dificuldade.
As palavras não têm som. Sinto os toques da extrema-unção: nos olhos, orelhas,
nariz, boca e mãos, instrumentos do pecado. Quero despedir-me de Maurice.
Dizer-lhe que o amei. Não, que o amo. Mas o odeio, também. O amor: foi mais
fácil fazer do que viver. Beije-me, Maurice, beije-me Maurice, beije-me onde o
sol não alcança. Silêncio. Mais frio. Novamente, a boca que mais parece um
buraco negro.
Piraí, sede de O Pirahí. Março de 1893
Eu
a conhecia desde criança. Nascida Ana Clara Breves Moraes, Nicota, condessa
Haritoff, neta do barão de Piraí, fechou os olhos. Jovem, tinha quarenta e três
anos ao falecer. Do que morreu? Falaram muito: tristeza, histeria,
envenenamento. O corpo frágil, pois Nicota era miúda, foi repousar no cemitério
da família, na fazenda Três Saltos, a sede dos potentados da região. A pequena
colina coberta de túmulos ao lado da igreja particular, dedicada a São Joaquim,
dorme tranquila, abraçada aos seus mortos. Piraí e seus arredores se cobriram
de luto. Da serra do Sinfrónio a São João Baptista do Arrozal, de Rio Claro a São
João da Barra, de Vassouras a Valença, os sinos chamaram para as missas em sufrágio
da sua alma. Às margens do rio Piraí, rio dos peixes ou do Paraíba, mar
ruim, à hora das avé-marias, recomendou-se a falecida à ultima misericórdia.
Alfaiates, seleiros, sapateiros, ferreiros, boticários, bilhares e até
fogueteiros fecharam suas portas na cidade. Casas de secos e molhados fizeram o
mesmo. Nos becos do Gil, do Alexandre, do Camarão, as mulheres emudeceram e
rezaram o terço. A família distribuiu esmolas entre os mais pobres. Era o
costume. Em toda a parte, a gente perguntava: o que a levou?
Quem não se lembrava da jovem de
longos cabelos, olhos grandes, mãos e pés de fada, arrebatada pelo estrangeiro?
Há vidas mortas, mas não esquecidas. Nicota cresceu nos terreiros de café,
brincando com as molecas, festejando São João, bordando roupinhas para o Menino
Jesus da matriz de Sant’Ana. Vi seus peitinhos nascerem atrás da camisa e, depois,
vir a doença. Todos conheciam a filha do coronel de polícia Silvino José, a irmã
do futuro visconde de Benevente, a sobrinha dos reis do café, Joaquim José e
José Souza Breves. O avô virou barão de Piraí vinte anos antes do casamento de
Nicota com o conde russo. Embora ostentassem títulos, os membros da família tinham
raízes nas classes mais humildes dos lugares de onde saíram para o vale
fluminense, e, apesar de ostentarem fulgurantes brasões, eram oriundos das
periferias. Não vieram de mais que as terceiras, quartas ou quintas linhas da
pequena nobreza portuguesa. Muitos queriam esquecer as suas próprias origens.
Delas despontavam avós negras e cativas.
O primeiro deles a chegar à região
de São João Marcos foi o patriarca António Souza, que adoptou por alcunha
familiar o Breves, e ficou conhecido por António Cachoeira. Ele é o tronco dos
dois ramos que, posteriormente, de forma curiosa, se denominavam e separavam
pela riqueza, com os epítetos de Breves Graúdos e Miúdos. Ainda que, pela força
da origem insulana, fossem todos miúdos. Todos descendentes de Maria Oliveira,
mulher solteira, e de pai incógnito.
O pai, coronel Silvino, mandava
em todos, do padre à força policial, e se encarregava de manter a ordem nas
terras da família. Negro fujão, quilombola, ladrão, roubo de gado, invasão de terras?
O couro comia. Protegia o comércio de víveres e escravos feito pelo cunhado,
Joaquim Breves, do litoral de Marambaia e Itacuruçá para o alto da serra. Contrariá-lo,
ninguém se atrevia. Sua mulher, Ana Clara, era um dos nove filhos sobreviventes
de quinze, dos barões de Piraí. Bela? Não. Um rosto oval, regular e severo
emoldurado pelos cabelos em trunfa. A boca era um traço descendente. O casal
possuía três fazendas, Bela Aliança, Botafogo e Bela Vista, em Piraí, além de
cinco sítios. Muito feio, Silvino tinha uma cabeça simiesca, olhos apertados, lábios
grossos e grande distância entre o nariz e a boca, cabeça que repousava sobre
um tronco atarracado. Além de Nicota, tiveram mais cinco filhos: José
Feliciano, a graciosa Cecília, Caetano, Manuel Eugênio e Rita Belmira». In
Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015,
ISBN 978-854-220-588-6.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,