«(…) Não tenho saída. A conversa com Vignale me deixou uma obsessão: recordar Isabel. Já não se trata de resgatar a sua imagem por meio das historinhas familiares, das fotografias, de algum traço de Esteban ou de Blanca. Conheço todos os seus dados, mas não quero sabê-los de segunda mão, e sim recordá-los directamente, vê-los em todos os detalhes diante de mim, assim como vejo agora minha cara no espelho. E não consigo. Sei que os olhos dela eram verdes, mas não consigo sentir-me diante do seu olhar.
Encontro meus filhos muito pouco.
Nossos horários nem sempre coincidem, e nossos planos ou nossos interesses,
menos ainda. Eles são correctos comigo; mas como, além disso, são terrivelmente
reservados, sua correcção sempre parece o mero cumprimento de um dever.
Esteban, por exemplo, está sempre se contentando para não discutir minhas opiniões.
O que nos separa será a simples distância geracional, ou eu poderia fazer algo mais
para me comunicar com eles? Em geral, acho-os mais incrédulos do que desatinados,
mais fechados do que eu, quando tinha a mesma idade. Hoje jantamos juntos.
Fazia provavelmente uns dois meses que não estávamos todos presentes num jantar
familiar. Perguntei, em tom de brincadeira, que acontecimento festejávamos, mas
não houve eco. Blanca me olhou e sorriu, como se me quisesse comunicar que
compreendia minhas boas intenções, e mais nada. Passei a registar quais eram as
escassas interrupções do consagrado silêncio. Jaime disse que a sopa estava insossa.
O sal está bem aí, a 10 centímetros da sua mão direita, retrucou Blanca, e acrescentou,
ferina: quer que eu lhe passe? A sopa estava insossa. É verdade, mas porque
aquilo? Esteban informou que, a partir do próximo semestre, nosso aluguer vai aumentar
80 pesos. Como todos contribuímos, a coisa não é tão grave. Jaime começou a ler
o jornal. Acho ofensivo que as pessoas leiam quando comem com a família. Disse isso
a ele. Jaime largou o jornal, mas foi o mesmo que se tivesse continuado a ler, porque
continuou sisudo, distante. Relatei meu encontro com Vignale, tentando ridicularizá-lo
para trazer ao jantar um pouco de animação. Mas Jaime perguntou: quem é esse
Vignale? Mario Vignale. Um sujeito meio careca, de bigode? Ele mesmo. Conheço.
Bela peça, disse Jaime, é colega de Ferreira. Tremendo achacador. No fundo,
agrada-me que Vignale seja uma porcaria, assim não tenho escrúpulos em me livrar
dele. Mas Blanca perguntou: com que então, ele se lembrava da mãe? Achei que
Jaime ia dizer alguma coisa, creio que moveu os lábios, mas decidiu ficar
calado. Sorte dele, acrescentou Blanca, eu não me lembro. Mas eu, sim, disse
Esteban.
Como será que ele se lembra? Como
eu, com recordações de recordações, ou directamente, como quem vê o próprio
rosto no espelho? Será possível que ele, que só tinha 4 anos, possua a imagem,
e que a mim, em contraposição, a mim, que tenho registadas tantas noites,
tantas noites, tantas noites, não reste nada? Fazíamos amor no escuro. Talvez
seja por isso. Seguramente, é por isso. Tenho uma memória táctil dessas noites,
e esta, sim, é directa. Mas e o dia? Durante o dia, não estávamos no escuro. Eu
chegava do trabalho cansado, cheio de problemas, talvez furioso com a injustiça
daquela semana, daquele mês. Às vezes fazíamos contas. Nunca chegava. Talvez
olhássemos demais os números, as somas, as sobras, e não tivéssemos tempo de
nos olhar. Onde ela estiver, se é que está, que lembrança terá de mim? Afinal,
a memória importa alguma coisa? Às vezes me sinto infeliz, só por não saber do
que tenho saudade, murmurou Blanca, enquanto repartia os pêssegos em calda.
Couberam três e meio para cada um.
Hoje
entraram para o escritório sete empregados novos: quatro homens e três
mulheres. Tinham umas esplêndidas caras de susto, e de vez em quando dirigiam
aos veteranos um olhar de respeitosa inveja. A mim, couberam dois pirralhos (um
de 18 e outro de 22) e uma moça de 24 anos. Portanto, agora sou totalmente
chefe: tenho nada menos que seis funcionários sob minhas ordens. Pela primeira
vez, uma mulher. Sempre desconfiei delas em matéria de números. Além disso,
outro inconveniente: durante os dias do período menstrual, e até mesmo nos que
os antecedem, se normalmente forem espertas, elas ficam meio atarantadas; e se
normalmente já forem atarantadas, tornam-se completamente imbecis. Esses novos
que entraram não parecem ruins. O de 18 anos é o que menos me agrada. Tem um
rosto sem força, delicado, e um olhar fugidio e ao mesmo tempo adulador. O
outro é um eterno descabelado, mas tem um aspecto simpático e (ao menos por
enquanto) uma evidente vontade de trabalhar. A mocinha não parece ter tanta vontade,
mas pelo menos compreende o que a gente explica; além disso, tem testa larga e boca
grande, dois traços que, em geral, me causam boa impressão. Chamam-se Alfredo Santini,
Rodolfo Sierra e Laura Avellaneda. Vou deixar com eles os livros de mercadorias
e com ela o Auxiliar de Resultados». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de
Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.
Cortesia de ECdeFerro/JDACT
JDACT, Mario Benedetti, Literatura,