O Áugure
«(…) Um trecho antes de chegar à
Porta Ticinese, o mais nobre dos acessos desse burgo, um amável mercador se
ofereceu para me acompanhar até a torre de Filarete, a entrada principal da
fortaleza do Mouro. Situado num dos extremos da urbe, o castelo dos Sforza
parecia uma réplica em miniatura das enormes muralhas da cidade. O mercador riu
ao ver minha cara de espanto. Disse que era curtidor em Cremona, um bom
católico, e que me acompanharia com prazer até ao interior da fortaleza em
troca da minha bênção para ele e sua família. Aceitei o acordo. O bom homem me
deixou diante do castelo do duque exactamente à hora nona. Aquele lugar era
ainda mais magnífico do que eu havia imaginado. Bandeirolas com a terrível
insígnia dos Sforza, uma espécie de serpente gigante devorando um pobre infeliz,
pendiam das ameias. Fitas azuis ondulavam ao vento, ao passo que meia dúzia de
enormes chaminés, cravadas em algum lugar do interior da fortaleza, exalavam
grandes lufadas de uma fumaça negra e densa. A entrada de Filarete constava de
uma ameaçadora ponte levadiça e duas comportas rebitadas de bronze, dobradas
sobre si mesmas. Não menos de quinze homens a vigiavam, espetando com espadas
os sacos de cereal que as carroças queriam desembarcar perto das cozinhas.
Um daqueles homens uniformizados
me indicou o caminho. Devia dirigir-me ao extremo oeste da torre, já dentro da
fortaleza, e perguntar pela área de recepção de visitantes e o gabinete de
luto que havia sido instalado para receber as delegações que viriam ao
funeral de donna Beatrice.
Meu cicerone de Cremona já me havia advertido de que toda a cidade pararia
quando chegasse esse momento. E, de facto, a essa hora não havia muita actividade.
Fiquei surpreso ao ver que o secretário do Mouro, um espigado cortesão de rosto
inexpressivo, não demorou a me receber. O servidor se desculpou por não poder
conduzir este servo de Deus até ao seu senhor. Ainda assim, examinou minha
carta de apresentação com ar céptico, comprovou que o selo pontifício era
verdadeiro e a devolveu acompanhada de um gesto de desolação. Lamento, padre
Leyre, Marchesino Stanga, assim se chamava, desmanchou-se numa torrente de
desculpas. Deve entender que o meu senhor não receba ninguém após a morte da
sua esposa. Suponho que possa imaginar o difícil momento que atravessamos e a
necessidade que tem o duque de ficar sozinho. Claro,
assenti com fingida cortesia.
Não obstante, acrescentou, quando
passar o luto, eu lhe transmitirei a notícia da sua presença na cidade. Eu
teria gostado de poder olhar nos olhos do Mouro e deduzir, como em tantos interrogatórios
que havia presenciado, se ocultavam ou não as sinistras sombras da heresia ou
do crime. Mas aquele servidor com um adorno de cabeça grená guarnecido de peles
e gibão de veludo, que falava com ares de mesquinha superioridade, estava
decidido a me impedir: também não podemos abrigá-lo, como é nosso costume,
disse com secura.
O castelo está fechado e não recebemos
hóspedes. Eu vos rogo, padre, que reze pela alma de donna Beatrice
e que regresse passados os funerais. Então, nós o receberemos como o senhor
merece. Requiescat
in pace, murmurei enquanto me persignava. Assim
farei. Também rezarei por vocês. Tive uma sensação estranha. Sem possibilidade
de me acomodar perto do duque e sua família, frustrado no meu propósito de
deambular com mais ou menos liberdade pelo seu castelo, minhas primeiras
investigações tomariam mais tempo. Tinha de conseguir um alojamento discreto
que me garantisse algum ambiente de estudo. Com os documentos de Torriani
queimando na minha bolsa, precisaria de calma, três pratos de comida quente ao
dia e uma boa dose de sorte para conseguir decifrar o seu segredo. Não era
sensato que um frade buscasse pousada entre os laicos, de modo que minhas opções
logo se reduziram a duas: ou me instalava no veterano convento de Santo Eustórgio
ou no novíssimo de Santa Maria delle Grazie, onde a possibilidade de cruzar com
o Áugure excitava a minha imaginação. Depois, com o tecto resolvido, teria
tempo de me dedicar ao enigma que o mestre Torriani havia me entregue em Betânia.
Reconheço que a Divina Providência
fez um trabalho exemplar. Santo Eustórgio logo se revelou como a pior das opções.
Situado muito perto da catedral, junto ao mercado, costumava estar cheio de
curiosos que não tardariam a se perguntar que tipo de assunto mantinha ali um
inquisidor romano. Embora a sua localização pudesse dar-me certa perspectiva
sobre as actividades do Áugure, poupando-me do risco de encontrá-lo cara a cara
sem saber de quem se tratava, também sabia que me oferecia mais inconvenientes
que vantagens. Quanto à outra opção, a de Santa Maria delle Grazie, além de ser
o suposto refúgio do meu objectivo, só apresentava outro pequeno, mas superável,
defeito: ali iam ser celebradas as multitudinárias exéquias de donna Beatrice.
Sua igreja, reformada havia pouco tempo por Bramante, estava prestes a se
transformar no foco de todos os olhares». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013,
Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Javier Sierra, Literatura, Florença, Conhecimentos,