Piraí, sede de O Pirahí. Março de 1893
«(…) Deus levou Nicota numa tarde
de Verão. Seu rosto expressava tristeza serena. Ela morreu com essa tristeza.
Morreu quietamente, como se cala um passarinho ao fim do seu bem voado dia.
Depois que acabou o estertor e o corpo se esvaziou, dizem que remoçou: linda,
novamente. Deus seja louvado por essa graça. O próprio cura, tio da moça, não queria
acreditar, pois ungiu-a hesitante, como se ungisse a própria mãe. No dia em que
o enterro saiu, a condessa adormecida num caixão com alças de bronze, a família,
os amigos, os ex-escravos, criados e empregados da fazenda, todos faziam as
mesmas perguntas. Porque nunca teve descendência, quando tantos sobrinhos,
crianças e jovens seguiam o cortejo? Porque se casou com o estrangeiro, quando
irmãos e irmãs se uniram aos primos e tios como era tradição na terra? Alguém lhe
viu a alma sair do corpo? Deixou qualquer sinal? Para mim, Nicota foi só
qualidade. Ninguém lhe pronunciava o nome sem emoção. Alegre, respeitada,
caridosa, seu riso nunca foi licença. Todas as bocas mastigaram orações por sua
alma. O cortejo entoou O Senhor amado. Cantei junto.
Dor tranquila e sombria a do viúvo.
Afinal, a morte era a morte. O conde russo, por sua vez, arrastava uma reputação
sulfurosa. Rumores o cercavam. Não faltava curiosidade sobre o prestígio do seu
título, sua liberalidade, as intrigantes viagens a Paris, de onde voltava para sacudir
letargias. Caloroso, ele agradava, seduzia. Acenando com a ideia de um grande
amor, tirou Nicota da gaiola. Mas foi só para jogá-la na tristeza, comentava o
povo no cortejo do enterro. Serei eu a fazer o necrológio para o jornal de Piraí.
O que contar? Queria dizer que essa foi a história de uma esposa infeliz, de um
marido infiel e de sua amante. De infidelidades feitas de feridas minúsculas,
de humilhações, de remorsos e solidão. Do uso e abuso de máscaras. Infidelidades
feitas não só de deslealdade amorosa, mas de mentiras. Mentiras sobre quem se é.
Mentiras sobre de quem se gosta. As dele, as dela. Mas na pedra do túmulo vai
estar escrito: Tributo do amor conjugal. Essa é uma história triste,
sobre a qual todos acham que sabem muito. E nada ou quase nada conhecem. Vontade
de embebedar-me. Brindar à morte, talvez, murmurando: Celebrarei na minha
flauta amena, teus olhos, morena. Hei-de procurar em Musset ou Byron
algumas linhas que falem da dor da perda. Perda de um coração de ouro.
Enviarei, sem remetente, uma poesia ao Pirahí. Trabalharei as quadras ao gosto do
tempo, misturando fanatismos de amor, palpites de morte, melancolia de Outono e
tristezas da separação. Feita de versos gastos, será minha homenagem anónima:
É chegado o momento de partir
Dor e luto se apossam do meu ser
Longe de ti, ó anjo feiticeiro
A vida é
treva, não posso viver.
A bordo do Équateur, Novembro de 1864
Chère
Maman
Estou saudoso. Lembro-me de lhe
dar o braço até à rua Daru. No frio Inverno, os oito braços das cruzes apoiados
em meias-luas, as flechas e os bulbos dourados da igreja de São Alexandre
Nevski guiavam o nosso caminho. Reunidos com a mais profunda veneração na cela
do seu guia espiritual, fomos abençoados pelo homenzinho magro de olhos brilhantes.
À frente de numerosos ícones de revestimento cintilante, uma Virgem de grandes
dimensões e reproduções de pintores italianos, se prosternou aos seus pés, cabeça
no chão, à russa. Que grande santo esse starets! Aliviou minha alma e lhe beijar as mãos
descarnadas. Maman, reze por mim e
para que essa viagem me traga o tesouro que procuro. Graças à conjunção de
vapor e vela, o Équateur entra,
rapidamente, nas águas do Brasil. O Cruzeiro do Sul cintila entre farrapos de
nuvens. Respiro o cheiro das matas tropicais. É diferente do odor das nossas florestas
de pinheiros, da imensidão dos campos de feno cobertos de um véu azul que
parece preso ao céu por pregos prateados. Longe da agitação de Paris, mergulho
no silêncio das noites no Hemisfério Sul. Silêncio só quebrado pelo riso de
Vera e Luís César na cabine ao lado. Ah, os recém-casados! Tranquilize-se. O
diplomata brasileiro faz minha irmã feliz!» In Mary del Priore, Beije-me onde
o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,