«Quando se começa a escrever um livro? Quanto tempo demoramos para escrevê-Io? Perguntas aparentemente fáceis, mas na verdade árduas. Se me atenho a factos exteriores, comecei estas páginas nos primeiros dias de Março deste ano e terminei em fins de Abril: dois meses. A verdade é que comecei na minha adolescência. Meus primeiros poemas foram de amor e desde então esse tema aparece constantemente na minha poesia. Fui também um ávido leitor de tragédias e comédias, romances e poemas de amor, dos contos das Mil e Uma noites a Romeu e Julteta e A Cartuxa de Parma. Essas leituras alimentaram minhas reflexões e iluminaram minhas experiências. Em 1960 escrevi meia centena de páginas sobre Sade, nas quais procurei traçar as fronteiras entre a sexualidade animal, o erotismo humano e o domínio mais restrito do amor. Não fiquei inteiramente satisfeito, mas aquele ensaio serviu para que eu percebesse a imensidão do tema. Em 1995 vivia na Índia; as noites eram azuis e eléctricas como as do poema que canta os amores de Krishna e Radha. Enamorei-me. Então decidi escrever um pequeno livro sobre o amor que, partindo da conexão íntima entre os três campos, o sexo, o erotismo e o amor, fosse uma exploração do sentimento amoroso. Fiz algumas anotações. Tive de parar: obrigações circunstanciais me forçaram a adiar o projecto, Deixei a Índia e uns dez anos depois, nos Estados Unidos, escrevi um ensnio sobre Fourier no qual voltei a algumas daquelas ideias esboçadas em minhas anotações. Outras preocupações e trabalhos, novamente, se interpuseram. Meu projecto ficava cada vez mais longe. Eu não podia esquecê-lo, mas tampouco tinha ânimo para executá-Io.
Passaram
os anos, Continuei escrevendo poemas que, com frequência, eram ele amor. Neles
apareciam, como frases musicais recorrentes, também como obsessões, imagens que
eram a cristalização de minhas reflexões, Não será difícil para um leitor que
tenha lido meus poemas encontrar pontes e correspondências entre eles e estas
páginas. Para mim, a poesia e o pensamento são um sistema único, A fonte de
ambos é a vida: escrevo sobre o que vivi e vivo. Viver também é pensar e, às
vezes, atravessar essa fronteira na qual sentir e pensar se fundem: isso é
poesia, Nesse meio tempo, o papel em que havia rascunhado minhas anotações na Índia
foi amarelando e algumas páginas se perderam nas mudanças e viagens. Abandonei
a ideia de escrever o livro». In Octavio Paz, A Dupla Chama. Amor e
Erotismo, 1993, Agência Siciliano de Livros, 1994, Brasil, ISBN 852-670-650-0.
Cortesia de ASdeLivros/JDACT
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