NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Serra Morena, Córdova, Abril de 1126
«O marido de Zulmira disse que
sim e então o persa atirou-lhe um saco e um cachimbo e Taxfin encheu-o. Depois,
perguntou: Como o acendo? Pela primeira vez, o homem mexeu-se e dirigiu-se à
lareira. Taxfin viu-o apanhar carvão em brasa com uma pinça de ferro. Depois,
aproximou-se da cama e estendeu-lhe a pinça, e Taxfin acendeu o cachimbo nela.
Deu umas passas, saboreando o fumo. Sabia bem, era haxixe de Marrocos. Uma onda
de nostalgia invadiu-o. Sabes, disse ao homem, fumei muito haxixe aqui, em Hisn
Abi Cherif, com alguns dos maiores poetas da Andaluzia a declamarem os seus
versos à Zulmira. É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador,
ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito
vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as
rosas. Deu uma nova passa no cachimbo e depois cerrou os dentes e disse: Abu Zhakaria
vai matar-vos. Ignorando-o, o outro declarou: São as ordens do califa:
matar-vos, matar a vossa mulher, e matar as filhas dela e de Hixam de Hisn Abi
Cherif. Tranquilo, Taxfin apenas perguntou ao seu carrasco: Porque não vos
matais depois, como mandava o Velho da Montanha? O alfange ergueu-se e caiu
sobre ele com violência, degolando-o num só golpe.
Coimbra,
Maio de 1126
As notícias correm depressa,
mesmo entre regiões cristãs e mouras, e Zaida contou-me que, um mês depois da Páscoa,
elas foram informadas de que Taxfin fora morto no castelo da serra Morena.
Foi na mesma tarde que a mãe lhes
explicou porque não fora a Ricobayo. As coisas pareciam todas ligadas umas às
outras, no passado, no presente e no futuro, era o que eu estava a concluir,
nesta fase da investigação. Havia razões para tudo. Há sempre.
Ainda em Viseu, Zulmira pedira à
rainha para regressar a Coimbra, em vez de a acompanhar à vassalagem a Afonso
VII, que decorreria na povoação de Ricobayo, próxima de Zamora. As filhas
haviam estranhado, era a segunda vez que a mãe inventava uma oportuna doença.
Um ano antes, depois das visitas a Astorga e Sahagún, queixara-se de um
misterioso mal-estar e abandonara a comitiva que seguia para Toledo. Contudo, só
quando chegou a Coimbra é que Zulmira saciou a curiosidade das filhas.
Em Ricobayo estaria gente do
tempo do imperador Afonso VI. Tal como em Toledo, no ano passado. Gente que se
lembra de mim, há muitos anos. Convidou-as a sentarem-se na sua cama, e recuou
várias décadas, à época em que Afonso VI, avô de Afonso Henriques e do agora
Afonso VII, era o imperador de Leão, Castela e Galiza, e dominava as taifas de
Sevilha, Badajoz e Mérida, obrigando vários reis mouriscos a pagarem-lhe
chorudos tributos.
Um desses era Al-Mutamid, rei de
Sevilha. Embora mais dado à poesia do que à guerra, e mais entusiasta de
rapazes do que de mulheres, Al-Mutamid casara e tivera uma única filha, chamada
Zaida, que mais tarde obrigara a desposar o wali de Córdova, Ismail-Ibn-Abbad, para poder anexar
essa cidade à sua Sevilha. Da união forçada entre Zaida e Ismael nascera
Zulmira. Quando esta tinha treze anos, furioso com as submissões dos reis árabes
ao imperador cristão, o califa Yusuf decidiu atacar Sevilha. Assustado, o rei-poeta
Al-Mutamid ordenou ao seu genro Ismail que pedisse ajuda a Afonso VI. Não
podendo abandonar Córdova, cujo cerco estava próximo, Ismail enviou a Toledo a
sua esposa, Zaida.
Acompanhei minha mãe nessa
embaixada, recordou Zulmira. Pouco depois de partirem, a tragédia abateu-se
sobre Córdova. A tomada da velha capital do califado foi uma carnificina sem
nome, as tropas de Ismail foram dizimadas pelos sanguinários algozes de Yusuf,
e as ruas tingiram-se de vermelho, com o sangue dos cordoveses derrotados.
O último a morrer foi meu pai,
Ismail, o governador de Córdova. Quando a notícia chegou a Toledo, tínhamos
acabado de nos instalar. Zulmira, que muito amava o pai, ficou destroçada. Porém,
sua mãe Zaida não perdeu tempo, e pediu uma audiência ao imperador. Nesse dia,
algo de espantoso aconteceu, murmurou
Zulmira.
Afonso VI tinha um talento
especial para seduzir as mulheres e comoveu-se com a solidão de Zaida, que
julgava uma viúva sofrida.Com quase cinquenta anos, o imperador já se casara três
vezes, tinha várias filhas, entre as quais Dona Urraca e Dona Teresa, mas nunca
gerara qualquer varão. Encantado com aquela bela princesa moura, converteu-a e,
algum tempo depois, engravidou-a! Quando Zulmira estava prestes a fazer quinze
anos, veio ao mundo o seu meio-irmão Sancho, o primeiro varão do imperador da
Hispânia!
Odiei-o desde o primeiro dia,
confessou Zulmira. Espantada, a filha Zaida perguntou: Porquê? Zulmira
suspirou, as antigas emoções já vazias de significado. Quando jovens, somos
loucos de ciúme. Na verdade, odiava Toledo, os cristãos, Afonso VI! Órfã de
pai, muçulmana numa corte cristã, recusava assimilar os costumes da capital da
Hispânia. Ao contrário da mãe, que se convertera à Bíblia, Zulmira mantinha-se
fiel ao Corão». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa
das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,