Com a devida vénia ao Doutor Jorge Duque Fernandes
«Frequentes vezes, é este religioso apontado como autor da obra, o que convém rectificar, porque, de facto, ainda que possa ter orientado Soror Isabel do Menino Jesus na organização do volume, a autoria pertence a esta mulher, oriunda de uma família do chamado estado do meio, cuja alfabetização foi rápida e polémica, numa vila acandorada na Serra do Sapoio onde as mulheres, como por todo o reino, não sabiam sequer assinar. O volume contém, entre os seus diferentes textos, a sua Vida, que, tanto quando sabemos, é a primeira autobiografia espiritual de autoria feminina que se imprimiu em Portugal. O impresso saiu com uma bela estampa retrato de Soror Isabel, posando com o livro nas mãos, obra do refinado gravador francês Jean Baptiste Michel Le Bouteaux (1682-1764), activo no reinado de João V. Como supomos na nossa tese, tratar-se-á de um retrato autêntico, o primeiro de um autor do sexo feminino que terá saído com a sua obra impressa no nosso país.
A tese decorreu em estreita
ligação com vários projectos sobre escritoras e redes culturais femininas na
Europa, sediados no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, coordenados por Vanda Anastácio, professora na mesma
Faculdade, que nos orientou em todos os trabalhos; e contou com o apoio da
Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), através da celebração de um
contrato para a concessão de uma bolsa de doutoramento, a 13 de Março de 2013,
com início da bolsa a 1 de Abril desse ano e fim a 31 de Março de 2016. Quase
até à conclusão, foi co-orientada por Isabel Drumond Braga, professora na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Desenvolvida numa necessária
interdisciplinaridade, sendo várias as áreas científicas que concorrem para a
sua finalidade, a tese situa-se, sobretudo, no âmbito da História Moderna,
debruçando-se sobre assuntos relacionados com a cultura portuguesa do período
moderno, uma vez que o seu objecto é uma escritora dos séculos XVII e XVIII.
Uma outra área é frequentemente visitada ao longo do texto, a da Teologia
Espiritual, não porque a abordagem seja tão teológica quanto histórica, mas
porque é necessário recorrer a vários conceitos daquela área, trata-se
de abordar uma escritora mística,
para
alumiar minimamente a obra de Soror Isabel do Menino Jesus, que descreve
numerosos fenómenos místicos e ensina um método de ascese, definido a partir da
direcção espiritual que recebeu ao longo dos anos, das suas leituras de livros
espirituais e, sobretudo, na sua própria prática; método clássico, numa escada
de três vias espirituais: a via purgativa, a via iluminativa e a
via unitiva, esta com três noites escuras, o ilapso e a união, ou morte
mística. Os apontamentos teológicos que fazemos ao longo da tese, para além de
tentarem uma simples aproximação ao contexto da espiritualidade da época
moderna, e à própria autora, não aprofundado nenhum dos conceitos, convidarão,
porém, a um estudo da obra desta mística portuguesa no âmbito teológico, o que
não é da nossa competência. A nossa tese, é, aliás, uma abordagem estritamente
limitada à sua finalidade e objectivos, atrás enunciados, e ainda pela
ponderação do número de páginas. Tratar-se-á, ainda assim, da mais extensa
abordagem que até hoje foi realizada à autora, o que não será de admirar, uma
vez que o seu caso era semelhante aos de muitas outras autoras portuguesas que,
entre o final do século XV e o início do século XIX, estão ainda esquecidas ou
são praticamente desconhecidas.
No manuscrito autógrafo de Soror
Isabel do Menino Jesus estão, na verdade, várias obras, e não apenas uma; ou,
para dizer de um outro modo, estão trinta e nove textos distintos,
correspondentes aos quatro géneros literários que praticou, não sabemos se
exclusivamente: autobiografia espiritual (uma Vida); tratado (um Tratado Místico);
súplica (uma Súplica ao Ministro Provincial); e epistolografia (vinte
Cartas a um Religioso, quinze
Cartas a uma Religiosa e
uma Carta à Abadessa e Religiosas). Estes textos
foram passados a limpo e acrescentados pela autora num só volume, com intenção
de o legar ao seu prelado, o referido provincial, prevendo-se a sua impressão,
que, entretanto, já a autora não viu, por morrer antes de se concluírem os
trâmites necessários, a 5 de Outubro de 1752. O volume sairia cinco anos
depois, em 1757, bastante atrasado em relação àquela intenção, o que supomos
ser devido, não a desconfianças acerca da idoneidade da sua autora ou aos seus
escritos, como se pensa, mas ao facto de o manuscrito estar em Lisboa no dia
1 de Novembro de 1755, tendo sobrevivido ao terramoto e suas réplicas. O
mau estado em que ficou o Convento de São Francisco de Xabregas, cabeça da
Província dos Algarves da Ordem seráfica, terá imposto ou demoras à impressão,
porque a prioridade seria reconstruir a casa.
Não nos é possível conhecer muito
acerca da recepção que teve o livro, mas é certo que os poucos exemplares que
se conservam ou deixaram notícias passaram pelas mãos de religiosos e
religiosas, e de pessoas seculares. O advento das Luzes em Portugal poderá ter
influindo sobre o interesse por estas obras de espiritualidade, mas não
conseguiu cortar o curso dos exemplares,
cujo
número saído da oficina desconhecemos, porque esses poucos que nos chegaram continuaram
a ser lidos. Também a extinção das Ordens religiosas, iniciada em 1834,
não logrou apagar a presença da autora e dos seus textos, pelo menos no seu convento,
onde a última religiosa sobreviveu quase até ao século XX e onde a comunidade
de mulheres e meninas que ali estava recolhida continuou a recordá-la.
A sua campa, situada no coro
baixo do extinto convento, terá continuado a ser venerada até aos anos 30,
porque a sua fama sanctitatis
atravessou os séculos, embora cada vez mais ténue.
Reconhecer a importância desta
autora, através de estudos, foi um desafio abraçado por outros, ainda antes de
a termos escolhido como objecto da nossa tese. É nossa esperança que este
contributo permita agora consideráveis avanços e, assim, estimule o interesse
dos mesmos e de outros investigadores, não só por Soror Isabel do Menino Jesus,
como pelas restantes autoras portuguesas, ainda pouco conhecidas. O mesmo
poderemos dizer em relação aos místicos portugueses, de ambos os sexos, dos
quais até agora pouco se sabe.
O
Estudo da Arte
Ao abrir Uma Antologia Improvável. A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII),
na qual colaborámos, a sua organizadora, Vanda Anastácio, lança uma questão
pertinente: Será possível escrever uma História
da Literatura Portuguesa anterior a 1900 que inclua as mulheres? Ou, dito de
outro modo: será possível falar
de escritoras antes da contemporaneidade?.
Esta
questão parece ter despertado o interesse de vários investigadores desde o início
da década de 90 do século passado, em Portugal e no Brasil, que se viram, no
entanto, confrontados com a escassez de dados acerca da leitura e da escrita das
mulheres nesse período». In Jorge Duque Fernandes, Soror Isabel do
Menino Jesus, Vida e Obra de uma Escritora Mística 1673-1752, Tese para
obtenção do grau de Doutor em História, 2016, Universidade de Lisboa, Faculdade
de Letras, Fundação para a Ciência e Tecnologia, SFEH/BD/79496/2011.
Cortesia de FCT/CMM/BMP/JDACT
JDACT, Jorge Duque Fernandes, História, Religião, Literatura, Caso de Estudo,