quinta-feira, 20 de julho de 2023

Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas. António José Saraiva. «Quando a Fé, que no mundo se pubrica, Tomé vinha pregando, e já passara províncias mil do mundo, que ensinara»

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«Aqui a cidade foi, que se chamava

Meliapor, fermosa, grande e rica;

Os ídolos antigos adorava,

Como inda agora faz a gente inica.

Longe do mar naquele tempo estava,

Quando a Fé, que no mundo se pubrica,

Tomé vinha pregando, e já passara

Províncias mil do mundo, que ensinara.

Aqui a cidade foi: estamos no passado concluso. E é com este foi que concordam o se chamava, o adorava e o naquele tempo estava. Tétis está falando naquele tempo passado e usa o imperfeito segundo a regra normal. Mas já então a Fé se pubrica no mundo: entramos no presente. E é com este presente que concorda agora o imperfeito na forma durativa, com que começa a história de Tomé: Tomé vinha pregando. É verdade que o já passara e o ensinara supõem novamente o passado como forma determinante. Mas o presente denotado pelo pubrica e anunciado pelo vinha pregando emerge, afinal, como tempo definitivo do episódio:

Chegado aqui, pregando e junto dando

A doentes saúde, a mortos vida,

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Tudo o que se segue a este traz é contado no presente, incluindo o desfecho, que é o assassinato do apóstolo:

Um dos maus, por fartar-se mais depressa,

Com crua lança o peito lhe atravessa.

O que este exemplo mostra talvez possa descrever-se como a emergência do presente. Por outras palavras, o passado serve só, neste caso, para sobrelevar o presente (= não-tempo); é um background. O que nos leva a um curioso resultado: o tempo, neste poema heróico, tem uma categoria inferior, acessória em relação ao não-tempo; é como a pedra não trabalhada sobre a qual avultam certas esculturas.

O advento de Afonso Henriques, a personagem que ocupa maior espaço na história de Portugal contada por Vasco da Gama (55 estrofes), é introduzido por uma breve narrativa dos seus antecedentes imediatos, em 7 estrofes. Estas têm os verbos todos, sem excepção, no perfeito; aquelas, todos, com poucas excepções, no presente.

Segundo esta hipótese, há n' Os Lusíadas, salva uma excepção notável de que adiante falaremos, uma hierarquia dos tempos verbais que é independente da categoria temporal. O tempo a que chamamos presente é reservado aos acontecimentos importantes; o tempo narrativo, aos que o Poeta considera acessórios, episódicos, de ligação, ou preparatórios do acontecimento em que se demora a vista.

Mas, além das acções visíveis aos homens, há, dentro do Poema, aquelas que são só visíveis aos deuses. Uma parte da história contida n 'Os Lusíados é posterior à viagem do Gama e só pode ser contada por personagens que têm o privilégio denver o futuro». In António José Saraiva., Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas, Gradiva, Publicações, 1996, ISBN 972-662-476-2.

Cortesia de GradivaP/JDACT

JDACT. António José Saraiva, Ensaio, Literatura, Camões