«Aqui a cidade foi, que se chamava
Meliapor,
fermosa, grande e rica;
Os ídolos antigos adorava,
Como inda agora faz a gente inica.
Longe do mar naquele tempo estava,
Quando a Fé, que no mundo se pubrica,
Tomé vinha pregando, e já passara
Províncias mil do mundo, que ensinara.
Aqui a cidade foi: estamos no passado concluso. E é com este foi que concordam o se chamava, o adorava e o naquele tempo estava. Tétis está falando naquele tempo passado e usa o imperfeito segundo a regra normal. Mas já então a Fé se pubrica no mundo: entramos no presente. E é com este presente que concorda agora o imperfeito na forma durativa, com que começa a história de Tomé: Tomé vinha pregando. É verdade que o já passara e o ensinara supõem novamente o passado como forma determinante. Mas o presente denotado pelo pubrica e anunciado pelo vinha pregando emerge, afinal, como tempo definitivo do episódio:
Chegado aqui, pregando e junto dando
A doentes saúde, a mortos vida,
Acaso traz um dia o mar, vagando,
Um lenho de grandeza desmedida.
Tudo o que se segue a este traz é contado no presente, incluindo o desfecho, que é o assassinato do apóstolo:
Um dos maus, por fartar-se mais depressa,
Com crua lança o peito lhe atravessa.
O que este exemplo mostra talvez possa descrever-se como a emergência do presente. Por outras palavras, o passado serve só, neste caso, para sobrelevar o presente (= não-tempo); é um background. O que nos leva a um curioso resultado: o tempo, neste poema heróico, tem uma categoria inferior, acessória em relação ao não-tempo; é como a pedra não trabalhada sobre a qual avultam certas esculturas.
O advento de Afonso Henriques, a personagem
que ocupa maior espaço na história de Portugal contada por Vasco da Gama (55 estrofes),
é introduzido por uma breve narrativa dos seus antecedentes imediatos, em 7
estrofes. Estas têm os verbos todos, sem excepção, no perfeito; aquelas, todos,
com poucas excepções, no presente.
Segundo esta hipótese, há n' Os
Lusíadas, salva uma excepção notável de que adiante falaremos, uma hierarquia
dos tempos verbais que é independente da categoria temporal. O tempo a que
chamamos presente é reservado aos acontecimentos importantes; o tempo narrativo,
aos que o Poeta considera acessórios, episódicos, de ligação, ou preparatórios do
acontecimento em que se demora a vista.
Mas, além das acções visíveis aos
homens, há, dentro do Poema, aquelas que são só visíveis aos deuses. Uma parte da
história contida n 'Os Lusíados é posterior à viagem do Gama e só pode ser
contada por personagens que têm o privilégio denver o futuro». In António
José Saraiva., Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas, Gradiva, Publicações, 1996,
ISBN 972-662-476-2.
Cortesia de GradivaP/JDACT
JDACT. António José Saraiva, Ensaio, Literatura, Camões