«Quando
criança, eu era muito preocupada com os números. A lembrança que guardamos dos
pensamentos ou das acções solitárias é muito clara: são as primeiras chances
dadas à consciência de se mostrar a si mesma. Os acontecimentos compartilhados,
por outro lado, permanecem presos à incerteza dos sentimentos que os outros nos
inspiram (admiração, medo, amor ou aversão) e que, quando crianças, somos ainda
menos aptos a enfrentar e mesmo compreender do que na idade adulta.
Lembro-me, então, particularmente
dos pensamentos que, toda noite antes de adormecer, me aliciavam para uma
escrupulosa ocupação de contagem. Pouco tempo depois do nascimento de meu irmão
(eu tinha então três anos e meio), minha família mudou-se para um novo
apartamento. Durante os primeiros anos em que moramos lá, minha cama ficava no
cómodo maior, diante da porta. Olhando fixamente para a luz que vinha da
cozinha, do outro lado do corredor, onde minha mãe e minha avó ainda
trabalhavam, eu não conseguia conciliar o sono enquanto não tivesse considerado,
em sequência, várias questões. Uma delas dizia respeito ao facto de alguém ter
muitos maridos. Não pensava sobre a possibilidade de que tal situação existisse,
o que me parecia óbvio, mas, evidentemente, sobre suas condições.
Uma mulher poderia ter muitos
maridos ao mesmo tempo ou apenas um depois do outro? Neste caso, quanto tempo
deveria ficar casada com um antes de poder trocar por outro? Quantos maridos
ela razoavelmente poderia ter: alguns, cinco ou seis, ou um número muito maior,
ilimitado? Como eu agiria quando crescesse? Com o passar dos anos, a contagem
de maridos foi substituída pela contagem de filhos. Acho que me sentia menos
vulnerável à incerteza quando fixava meus devaneios nos traços de um homem
identificado (actores de cinema, um primo alemão etc.), com quem me encontrava
sob o signo da sedução. Imaginava assim, de maneira mais concreta, minha vida
de mulher casada e, portanto, a presença de crianças.
Colocavam-se novamente as mesmas
perguntas: seis era um número razoável ou se poderia ter mais? Que diferença de
idade poderia haver entre eles? Acrescentava-se a divisão entre meninas e
meninos.
Não posso rememorar esses
pensamentos sem ligá-los a outras obsessões que também me ocupavam. Na relação
que eu tinha estabelecido com Deus, todas as noites ocupava-me com Sua
alimentação e com a enumeração dos pratos e dos copos d'água que eu, em pensamento,
Lhe servia, preocupada com a quantidade certa, com o ritmo da transmissão etc.
Esta obsessão se alternava com as interrogações sobre o preenchimento de minha
vida futura com maridos e filhos.
Eu era muito religiosa, e é
possível que a confusão na qual eu percebia a identidade de Deus e de Seu filho
tenha favorecido minha inclinação pela actividade de contagem. Deus era a voz
sonante que, sem mostrar o rosto, lembrava a ordem aos homens.
Mas tinham-me ensinado que Ele
era também o boneco de gesso rosa que eu colocava todos os anos no presépio, o
infeliz pregado na cruz diante do qual rezávamos, apesar de um e outro serem
também Seu filho, da mesma maneira que uma espécie de fantasma se chamava
Espírito Santo. Enfim, eu sabia muito bem que José era o marido da Virgem e que
Jesus, sendo Deus e filho de Deus, O chamava de Pai. A Virgem era não apenas a
mãe de Deus, mas dizia-se também Sua filha.
Um dia, quando cheguei à idade de
frequentar o catecismo, quis ter uma conversa com um padre. Meu problema era o
seguinte: eu queria tornar-me religiosa, casar com Deus e ser missionária numa
Africa onde pululavam povos desprovidos, mas desejava também ter maridos e
filhos. O padre era um homem lacônico, e interrompeu a conversa, julgando minha
preocupação prematura.
Até
que nascesse a ideia deste livro, nunca havia pensado muito sobre minha sexualidade.
Tinha, no entanto, consciência das múltiplas relações precoces que vivi, o que
é pouco costumeiro, sobretudo para meninas, pelo menos no meio em que cresci. Deixei
de ser virgem aos dezoito anos, que não é especialmente cedo, mas participei de
uma suruba pela primeira vez nas semanas que se seguiram a minha defloração».
In Catherine Millet, A Vida Sexual de Catherine M, Editora Ediouro, 2001, ISBN 978-843-397-791-5.
Cortesia de EEdiouro/Anagrama/JDACT
JDAXT, Catherine Millet, Literatura,