sábado, 22 de julho de 2023

Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas. António José Saraiva. «Que gloriosas palmas tecer vejo com que Vitória a fronte lhe coroa, quando, sem sombra vã de medo ou pejo, toma a ilha ilustríssima de Goa!»

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«Assim Tétis, na Ilha dos Amores,

Com doce voz está subindo ao Céu

Altos varões que estão por vir ao mundo,

Cujas claras ideas viu Proteu

Num globo vão, diáfano, rotundo.

Nesses casos usa Camões o futuro, mas um futuro que é apenas um presente inactual, invisível aos homens, mas visível aos deuses. O futuro é também, portanto, um tempo verbal que denota, como o presente, a intemporalidade; por isso acontece que na voz dos deuses presente e futuro são interpermutáveis, como se vê nas estrofes consagradas por Tétis a Afonso de Albuquerque:

Mas oh! que luz tamanha que abrir sinto

(Dizia a ninfa e a voz alevantava)

(...)

Esta luz é do fogo e das luzentes

Armas com que Albuquerque irá amansando

De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,

(...)

Que gloriosas palmas tecer vejo

Com que Vitória a fronte lhe coroa,

Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,

Toma a ilha ilustríssima de Goa!

(...)

Eis já sobr'ela torna e vai rompendo

Por muros, fogo, lanças e pelouros,

(...)

Irão soldados ínclitos fazendo

Mais que leões famélicos e touros.

Segundo a nossa hipótese, a abolição do tempo, que Camões procurou exprimir por um jogo especial dos tempos verbais, está relacionada com o facto de, desde o começo do Poema, o Autor se colocar na atitude de quem mostra sobre uma superfície visível acontecimentos que o olhar abrange. No interior do Poema essa atitude converte-se em processo literário. É assim que, ao longo de quase metade do canto VIII, Paulo da Gama explica ao catual as tapeçarias da nau capitaina, que representam heróis em acção, desde Luso, primeiro povoador de Portugal, até Duarte Meneses, capitão em Marrocos. É uma boa parte da história de Portugal que por este processo é referida. Paulo da Gama descreve um por um os quadros que estão diante dos seus olhos e dos do catual, começando cada explicação por expressões como: Este que vês; Vês outro que; Olha aquele e outras semelhantes. Notemos que cada pintura representa uma acção, de modo que cada explicação é uma breve narrativa, se esta palavra se pode aplicar a uma representação estendida no espaço e que é precedida de uma introdução no tipo de Vê-lo, cá vai. É claro que, referindo-se a quadros presentes (se bem que movimentados), o relator só pode usar os verbos no presente. Falando do célebre feito de Giraldo Sem Pavor:

Olha aquele que dece pela lança

Com as duas cabeças dos vigias».

In António José Saraiva., Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas, Gradiva, Publicações, 1996, ISBN 972-662-476-2.

Cortesia de GradivaP/JDACT

JDACT. António José Saraiva, Ensaio, Literatura, Camões,