«Assim Tétis, na Ilha dos Amores,
Com doce voz está subindo ao Céu
Altos varões que estão por vir ao
mundo,
Cujas claras ideas viu Proteu
Num globo vão, diáfano, rotundo.
Nesses casos usa Camões o futuro,
mas um futuro que é apenas um presente inactual, invisível aos homens, mas
visível aos deuses. O futuro é também, portanto, um tempo verbal que denota, como
o presente, a intemporalidade; por isso acontece que na voz dos deuses presente
e futuro são interpermutáveis, como se vê nas estrofes consagradas por Tétis a
Afonso de Albuquerque:
Mas oh! que luz tamanha que abrir
sinto
(Dizia a ninfa e a voz alevantava)
(...)
Esta luz é do fogo e das luzentes
Armas com que Albuquerque irá
amansando
De Ormuz os Párseos, por seu mal
valentes,
(...)
Que gloriosas palmas tecer vejo
Com que Vitória a fronte lhe
coroa,
Quando, sem sombra vã de medo ou
pejo,
Toma a ilha ilustríssima de Goa!
(...)
Eis já sobr'ela torna e vai
rompendo
Por muros, fogo, lanças e
pelouros,
(...)
Irão soldados ínclitos fazendo
Mais que leões famélicos e touros.
Segundo a nossa hipótese, a
abolição do tempo, que Camões procurou exprimir por um jogo especial dos tempos
verbais, está relacionada com o facto de, desde o começo do Poema, o Autor se
colocar na atitude de quem mostra sobre uma superfície visível acontecimentos
que o olhar abrange. No interior do Poema essa atitude converte-se em processo
literário. É assim que, ao longo de quase metade do canto VIII, Paulo da Gama
explica ao catual as tapeçarias da nau capitaina, que representam heróis em
acção, desde Luso, primeiro povoador de Portugal, até Duarte Meneses, capitão
em Marrocos. É uma boa parte da história de Portugal que por este processo é
referida. Paulo da Gama descreve um por um os quadros que estão diante dos seus
olhos e dos do catual, começando cada explicação por expressões como: Este
que vês; Vês outro que; Olha aquele e outras semelhantes.
Notemos que cada pintura representa uma acção, de modo que cada explicação é
uma breve narrativa, se esta palavra se pode aplicar a uma representação estendida
no espaço e que é precedida de uma introdução no tipo de Vê-lo, cá vai.
É claro que, referindo-se a quadros presentes (se bem que movimentados), o
relator só pode usar os verbos no presente. Falando do célebre feito de Giraldo
Sem Pavor:
Olha aquele que dece pela lança
Com as duas cabeças dos vigias».
In António José Saraiva., Estudos sobre a
Arte d’Os Lusíadas, Gradiva, Publicações, 1996, ISBN 972-662-476-2.
Cortesia de GradivaP/JDACT
JDACT. António José Saraiva, Ensaio, Literatura, Camões,