Bristol. Inglaterra. Junho
«Vamos,
é só dar um passo, só mais um. Você consegue. O que
tem a perder? Você não tem mais nada! O pensamento chegou quando a brisa da maré alta soprou. O
cheiro de maresia salgada com peixe podre, misturado ao tabaco e bebida que
vinham dos bares próximos, dava enjoo. Ou será que eu estava amarelando?
Não, você já tomou essa decisão, não vai
voltar atrás. E voltar atrás para quê? Falava sozinho, olhando para o
atracadouro onde as ondas batiam ferozes, respingando nos meus pés. O mar
ficava agitado naquela época. Bom, é isso aí. Olhei em volta mais
uma vez, para ter certeza de que não tinha ninguém por perto. Não, não havia
ninguém. Eu estava sozinho. Sozinho. Como sempre fora a minha droga de vida.
Uma porcaria sem fim!
Apertei os nós dos
dedos. E daí que estava sozinho? Era melhor assim. Quem iria se importar
comigo? Com o idiota e beberrão do Holly Finger? Quem notaria minha falta?
Minha ex-mulher, aquela vaca maldita? As prostitutas do Samuel’s? Talvez
sim,
dei um sorrisinho. Eu mandava bem, isso as vadias poderiam confirmar para
qualquer um. Meu senhorio? Ele daria queixa à polícia por falta de pagamento ou
pegaria minhas coisas no quarto barato para cobrir o prejuízo. Coitado! Dei
risada. Nem mesmo no trabalho dariam por minha falta. Não fui despedido àquela
tarde por, como foi mesmo que o escroto do
meu patrão dissera? Um comportamento
inadequado de atrasos e por estar alcoolizado no expediente?
Pelo menos pude
desforrar naquele me… um bom par de golpes antes que me jogassem na rua. E o
almofadinha ainda ameaçou chamar a polícia! Desgraçado! À me… com todos eles!, resmunguei, dando mais um gole na garrafa. O
conhaque ardeu e me fez lacrimejar. Eu logo estaria livre de todo aquele bando
de corvos fedorentos e carniceiros! Era só dar mais um passo...
E então percebi que
não estava sozinho como pensara. Quem
está aí?, chamei para a escuridão. Não conseguia enxergar direito, mas tinha
certeza de que alguém estava parado a uns vinte passos.Me…!Tudo o que eu não
queria era um mala para bancar o herói. O estranho não se mexeu nem respondeu. Seja
lá quem for, você está me atrapalhando aqui, parceiro, engrossei a voz. Melhor
ir dando o fora antes que eu... Parei de falar. Não havia ninguém ali. Pisquei
os olhos várias vezes para conferir. Comecei a dar risada. Holly, sua besta!
Agora você deu para ver coisas?
Melhor acabar logo com
isso. Virei-me para o cais e tremi em um arrepio, assim que a brisa aumentou
por detrás do meu corpo. Foi tudo muito rápido. Al São Paulo. Dezembroguma
coisa me agarrou pelas costas e senti o rasgo na garganta. Apesar da dor,
consegui olhar para trás, para o grande par de olhos vermelhos na escuridão.
Terminal Rodoviário do Tieté
São Paulo. Dezembro
Feliz
Natal! A rodoviária estava
literalmente um inferno. Multidões caminhavam apressadas para
suas plataformas, carregando bagagens enormes, multicoloridas. Parentes se
despediam, mandando lembranças para suas famílias. Lágrimas e choro por toda
parte. Enquanto as pessoas se acotovelavam, o risonho Pai Natal continuava a
desejar um feliz Natal, distribuindo balas às crianças e folhetos informativos
aos passageiros. Lembrei-me de Ben...
Ambulantes passavam
oferecendo água, refrigerantes, sucos, biscoitos, em cadências e sotaques dos
mais variados. Era impossível livrar-se deles. Estava ansiosa pelo silêncio e a
ordem dentro daquele caos. Eu deveria ter
tomado um avião. Mas essa provavelmente teria sido a pior
solução, se é que haveria alguma boa em meio aos derradeiros acontecimentos. Faziam
realmente sentido as últimas 24 horas? Como aquele rastreador conseguiu me
encontrar? Eu não deixara vestígios durante o último ano, tudo tinha sido
meticulosamente planeado para evitar isso. Era o mínimo que eu poderia fazer:
sumir, desaparecer, proteger os que ficaram para trás. Era meu principal objectivo,
maior do que qualquer outra necessidade.
Campo Grande, 21 horas
e 30 minutos, plataforma 37. Passagens, por favor!, gritou
o fiscal da empresa de ónibus, afastando meus devaneios e me fazendo caminhar
para a fila de embarque.
Não levava bagagem,
apenas duas mochilas com coisas importantes para alguém em minha situação. Por
isso, rapidamente entreguei meu bilhete e embarquei. Com alívio afundei o corpo
na poltrona nos fundos do veículo e puxei as cortinas, numa tentativa de
conseguir paz e silêncio para raciocinar. Foi um golpe de sorte, o único dentre os problemas que aconteceram, achar uma passagem disponível naquela época do
ano, pois elas se esgotavam bem antes. Uma sorte que não convinha desperdiçar
nem abusar». In Georgette
Silen, Lázarus, Editora Giz, 2013/2014, ISBN 978-857-855-186-5.
Cortesia de EGiz/JDACT
JDACT, Literatura,
Inglaterra, Georgette Silen,