Um morto e quatro e funerais
«O caixão ficou em câmara ardente
no Funchal, e a esse navio juntaram-se tanto os vasos de guerra brasileiros
Pernambuco, Santa Catarina e Paraná quanto os portugueses Gago Coutinho,
Sacadura Cabral e João Belo. A esquadra binacional foi saudada por aviões da
Força Aérea Brasileira logo que entrou nas águas territoriais do país.
Obedecendo ao cerimonial, a Funchal aportou no Rio de Janeiro em 22 de Abril,
para que coincidisse com a data em que Cabral chegou ao Brasil em 1500.
Esqueceram-se de que a mesma data também marcava o aniversário de 151 anos do
decreto de João VI que estabelecera o filho como príncipe regente. No monumento
aos combatentes brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial, o presidente
português Américo Tomás entregou oficialmente Pedro à pátria adoptiva.
A propaganda política, a ditadura
já se havia utilizado de símbolos populares, como alguns jogadores de futebol e
a própria selecção brasileira, beneficiando-se muito e do prestígio obtido pelo
suor e pela garra da equipa que sonhara a Taça do Mundo de 1970. Dois anos
depois, Médici poria um morto e alguns vivos a correr o Brasil inteiro em favor
da sua imagem. No próprio dia 22 de Abril, enquanto, sob o clamor de mais de
5000 pessoas, o corpo de Pedro seguia para o seu antigo palácio, na Quinta da
Boa Vista, corredores partiam dos pontos extremos do território brasileiro, do
norte, do sul, do leste e do oeste, levando uma tocha representativa do fogo
simbólico da pátria. Ambos, corredores e Pedro, deveriam chegar sincronizados à
colina do Ipiranga, no Monumento à Independência, em 7 de Setembro, 150 anos exactos
depois do histórico dia.
Pedro recebeu um verdadeiro tratamento
de santo. O seu corpo subiu e desceu de inúmeros camiões do Corpo de Bombeiros
e de blindados militares, passou por diversas capitais brasileiras, sendo o seu
caixão velado em várias catedrais pelo país. Morto, viajou pelo Brasil mais do
que quando nele viveu. Sacolejado por todo o Brasil, o ex-monarca ainda achou
quem o incomodasse.
Dentro do caixão, aberto em 2012,
havia diversos cartões-de-visita. Alguns remontavam ao início do século XX; outros
pertenciam a embaixadores e militares que tinham participado nas comemorações
do Sesquicentenário.
Naquele 7 de Setembro de 1972, jactos
sobrevoaram o monumento. Tiros de canhão, e até sons de buzinas, ensurdeceram o
ar. Era como se o Brasil tivesse vencido mais uma partida de futebol.
Acontece, porém, que os
portugueses não se haviam preocupado com o tamanho interno do local onde o
caixão seria depositado. Se a ex-miss Brasil, Marta Rocha, perdera o concurso
de Miss Universo de 1954 por conta de duas polegadas a mais nos quadris, Pedro
ficaria quatro anos do lado de fora do sarcófago porque o caixão tinha oito
centímetros a mais que o espaço que lhe era destinado.
Esse espetáculo nacional
patrocinado pela ditadura entrava em flagrante contraste com a primeira
cerimónia de sepultamento, que em 1834 pretensamente levara Pedro ao seu
descanso final no Panteão dos Bragança, junto aos seus antepassados.
Pedro experimentou, nesse segundo
funeral, tudo (e um pouco mais) o que não quisera experimentar no primeiro. No
seu testamento, afinal, havia esclarecido que queria ser inumado como simples
general. Ao contrário do ocorrido em 197 2, em 1834 o seu corpo foi levado para
o jazigo durante a noite, o que parecia representar, na época, um processo de integração
do morto no seu novo mundo». In Paulo Rezzutti, Pedro IV, A História Não
Contada, 2015, Casa das Letras, 2016, ISBN 978-989-741-495-4.
Cortesia da CdasLetras/JDACT
JDACT, Paulo Rezzutti, Pedro IV, Brasil, História, Conhecimento, Literatura,