Porém, enquanto cambaleava diante
da casa-de-banho, olhou de relance para seu reflexo no espelho acima do lavatório
e viu que tinha criado chifres durante a noite. O susto foi tão grande que o
fez recuar e, pela segunda vez em 12 horas, mi… nos próprios pés.
Ele enfiou de novo a bermuda cáqui, ainda estava com as mesmas
roupas que usara no dia anterior, e se debruçou sobre o lavatório para olhar
melhor. Em matéria de chifres não eram lá grande coisa. Tinham mais ou menos o
tamanho de seu dedo anular, eram grossos na base e, à medida que faziam uma
curva para cima, se afinavam até formar uma ponta. Os chifres estavam cobertos
por uma pele muito pálida, com excepção das extremidades pontiagudas, que eram
de um vermelho intenso e feio, como se estivessem prestes a romper a carne.
Tocou um deles e percebeu que a ponta estava sensível, ligeiramente dolorida. Correu
os dedos ao longo de cada um dos chifres, sentindo a densidade do osso por
baixo da pele lisa e esticada.
A primeira coisa em que pensou
foi que, de algum modo, ele mesmo tinha causado aquela aflição para si. Na
noite anterior, já bem tarde, entrara pela mata atrás da velha fundição até ao local
onde Merrin Williams havia sido morta. As pessoas tinham deixado lembranças numa
cerejeira doente e sombria, cujo tronco descascado deixava o cerne à mostra.
Merrin fora encontrada assim, com as roupas rasgadas deixando a carne à mostra.
Havia fotos dela delicadamente dispostas nos galhos, um vaso de flores de
salgueiro-gato, cartões Hallmark retorcidos e manchados pela exposição ao
tempo. Alguém, provavelmente a mãe de Merrin, tinha deixado grampeada no tronco
da árvore uma cruz de rosas amarelas de náilon e uma Virgem de plástico que
sorria com a beatitude idiota dos retardados.
Ig não suportava aquele sorriso
afectado. Tampouco suportava a cruz, afixada ao local onde Merrin sangrara até
morrer em decorrência de traumatismo craniano. Uma cruz de rosas amarelas. Pu…
que par…! Era como uma cadeira eléctrica com almofadas de estampa florida: uma
piada de mau gosto. Ele ficou incomodado por alguém querer levar Cristo até
ali. Cristo estava um ano atrasado para fazer algum bem; não esteve por perto
quando Merrin precisou d’Ele.
Ig arrancou a cruz do tronco,
jogou-a no chão e a pisou. Precisava urinar. Fez isso mirando a Virgem e, bêbado,
acabou acertando nos próprios pés. Talvez isso tivesse sido blasfêmia suficiente
para causar aquela transformação. Mas não, ele sentia que havia mais alguma
coisa. Não conseguia lembrar o quê. Tinha bebido demais. Virou a cabeça para um
lado e para o outro, estudando-se no espelho, tocando os chifres repetidamente.
A que profundidade chegava o osso? Será que havia raízes que se infiltravam até
ao cérebro? Quando pensou nisso, o banheiro escureceu, como se a lâmpada no tecto
tivesse piscado por um momento. No entanto, a escuridão estava em seus olhos,
na sua cabeça, não nas lâmpadas. Ele agarrou o lavatório e esperou a fraqueza
passar.
Então se deu conta. Iria morrer.
Claro que iria morrer. Alguma coisa estava mesmo pressionando seu cérebro: um
tumor. Os chifres não estavam ali de verdade. Eram metafóricos, frutos da sua
imaginação. Ele tinha um tumor comendo seu cérebro e fazendo com que ele visse coisas.
E, se já chegara a esse ponto, provavelmente era tarde demais para ser salvo» In
Joe Hill, O Pacto, 2010, Editora Arqueiro, 2013, ISBN 978-858-041-051-8.
Cortesia de EArqueiro/JDACT
JDACT, Joe Hill, Literatura,