Sevilha, 1492
«O Papá surge do escuro como um fantasma.
Põe o braço à volta dos ombros da Mamá e puxa-a para a viela; a seguir, fecha a
porta atrás deles com um ruído seco. Por baixo do casaco do Papá, Paloma entrevê
o reflexo do punhal que traz sempre consigo encaixado no cinto, uma lâmina curta
com punho de madeira, um presente que o pai dele lhe dera quando se fizera ao mar
pela primeira vez. Está afiado e pronto para cortar pão, amanhar peixe ou espetar
entre as costelas de um homem'
Servir-me-ei dele, se for preciso
- dissera o Papá há pouco tempo, enquanto afiava o punhal, ignorando a expressão
horrorizada da Mamá, que se encolhera toda ao ver a lâmina aguçada. Paloma olha
a arma com inveja. se ao menos ela tivesse o seu próprio punhal! Um punhal com
uma lâmina tão afiada como o do Papá. E havia de usá-lo, sem dúvida. um só punhal
nunca será suficiente para os proteger a todos.
A viela estreita está mergulhada
na mais completa escuridão, e os muros à volta transmitem-lhes um sentimento de
opressão. À medida que caminha, Paloma sente a pressão do alaúde que lhe cinge os
ombros e o peso familiar da chave no bolso. Naquele silêncio mortal, a respiração
arquejante ecoa-lhe dentro da cabeça, e o ritmo dos próprios passos repete-se incessantemente
aos seus ouvidos. Vão-se embora. Vão-se embora. Vão-se embora.
O Papá acelera o passo, e agora os
pés dela voam sobre o caminho de terra, atravessando o negrume estonteante da praça
e entrando pelo labirinto escuro de casas dentro. Passam pela sombra da Igreja de
Santa Maria La Blanca, outrora a principal sinagoga da comunidade, uma rajada de
vento varre os cheiros fétidos a esgoto e a fumo pelas vielas fora, erguendo uma
nuvem de poeira que lhes apaga as pegadas.
Depois, deixam para trás a torre da
Igreja de Santa Catalina, : o minarete da antiga mesquita de São Marcos ergue-se
na escuridão. A madrugada ainda vem longe, a Lua é um pálido crescente na taça
de ébano da noite. Já passou o equinócio da Primavera. Este ano não houve chuvas.
Terão uma visão nítida das Estrelas que os guiarão em direcção ao Ocidente.
Agora já falta pouco para a porta
na muralha da cidade. O amigo do Papá, o mouro Ismael, vai estar lá à espera deles.
Naquela tarde, quando for buscar os documentos e valores da família, avisou-os de
que não se atreveria a arriscar acordar de noite a vizinhança com o som das ferraduras
dos cavalos no chão. Encontramo-nos na porta da cidade, dissera ele. Trarei mulas
e mantimentos para a viagem. Os papéis e as jóias vou escondê-los num compartimento
secreto da carroça, onde estarão a salvo. Iremos por um caminho que conheço através
das colinas do sopé de Al-Andaluz até à fronteira
de Portugal.
E se
nos pararem e interrogarem?, perguntou o Papá. Serão uma família de peregrinos que
vão em direcção à cidade do Porto, para daí seguirem o caminho da peregrinação até
Santiago de Compostela. O guarda da porta da cidade é um pobre diabo que, se não
estiver já bêbedo, em breve estará, por meia dúzia de ducados». In Brigid
Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,