quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Jaime Cortesão: Parte II. Política, História e Cidadania (1884-1940). «Uma personalidade singular que ocupou lugar proeminente na cultura política e na cultura histórica do seu tempo, sobretudo pela afirmação de um combate político e no sentido de reavivar a consciência histórica e cívica»

Cortesia de Elisa Travessa

Com a devida vénia a Elisa Neves Travessa, publico algumas palavras do Prémio de História Contemporânea da Universidade do Minho, edição 2002.

«Durante os anos que frequentou a Escola Médico-Ciúrgica do Porto, Cortesão assumiu um papel preponderante na luta académica distinguindo-se como um dos principais Intransigentes contra a ditadura de João Franco. A repetição dos exames de todas as cadeiras do 2º ano do curso de Medicina (1906-07) denunciam o envolvimento na Greve Académica de 1907 e o ambiente de contestação vivido no meio académico, principalmente na Universidade de Coimbra, onde o movimento tivera origem.
Após completar o 4º ano na Escola Médico-Ciúrgica do Porto, Cortesão transfere a sua matrícula para Lisboa, onde frequenta o 5º ano. Termina o curso com a apresentação, em 1910 (depois da implantação da República), da tese - A Arte e a Medicina. Antero de Quental e Sousa Martins, em que contesta, no essencial, a teoria de Sousa Martins sobre Antero.
A dissertação de licenciatura, objecto privilegiado nesta fase do nosso estudo, comprova que os motivos da indecisão de Cortesão face à escolha do curso se mantêm e talvez - arriscamos - se tenham acentuado. Esta tese revela, por outro lado, a multiplicidade de formas de expressão e acção, a par do enunciado de muitos dos postulados essenciais do seu pensamento e das futuras produções.

Cortesia de sebodomessias

O título da dissertação poderia ser simplesmente O caso clínico de Antero de Quental. Crítica à Nosografia de Antero por Sousa Martins, mas, esclarece Cortesão, este estudo possui uma maior abrangência e não se confina a um trabalho de Medicina, é também um estudo de psicologia, de arte e de filosofia, para além de envolver uma questão moral: reabilitar a memória de Antero «como uma sagrada missão a cumprir».

Romero de Magalhães considera que, na referida dissertação, a Arte e a Medicina «emparelham, embora a arte preceda a medicina. A arte interveniente e não meramente contemplativo». O percurso de Jaime Cortesão, quer no âmbito da intervenção cívica, quer no que respeita à produção escrita, denunciam que a Arte, enquanto expressão suprema dos sentimentos e ideias, «expansão criadora» e criação original, ocupou sempre um lugar privilegiado nas actividades, projectos e produções em que o autor se envolveu.
Cortesão refere o texto de António Sérgio - Notas sobre os «Sonetos» e as «Tendências Gerais da Filosofia de Antero de Quental» (1909), reconhecendo nele «o primeiro trabalho sério no sentido duma crítica honesta à obra de Antero», um sentido que se estaria a esboçar na «moderna geração literária portuguesa». Nesta publicação do jovem Sérgio é possível perceber uma reacção ao cientismo naturalista, partilhada por Cortesão.

Cortesia de proencacortesaosergiosearanova

O motivo para a escrita das Notas «é a leitura de Antero por Sousa Martins e a crítica anteriana ao naturalismo». Quer Sérgio quer o jovem Cortesão discutiram e contestaram as ideias naturalistas de Sousa Martins, embora Cortesão o fizesse de forma mais desenvolvida e na dupla qualidade de médico e artista. Ambos recusaram o cientismo como explicação unívoca de uma obra literária. Na revista Serões, numa notícia bibliográfica, certamente da autoria de Sérgio, é feito o elogio da tese de Cortesão, sobretudo pelo que ela representa no combate à «teoria geral patológica do génio» defendida por Sousa Martins. Na opinião de António Reis e «a partir da comum admiração por Antero e da comum rejeição dos dogmas do naturalismo cientista que se estabelece a primeira ponte intelectual entre Cortesão e Sérgio, a partir da qual se abriria facilmente a via de uma amizade e de projectos comuns de intervenção cívica, que envolveriam os demais vultos desta nova geração, não sem que outras clivagens entre eles surgissem posteriormente». Clivagens que emergem logo no início do movimento da Renascença Portuguesa e que atingem maior expressão na polémica entre Cortesão e Sérgio, publicada nas páginas da revista A Vida Portuguesa, quinzenário da Renascença dirigido por Cortesão.
A tese de licenciatura mereceu ainda as críticas favoráveis de outros companheiros da Renascença. Leonardo Coimbra considera-a «um simpático protesto do poeta contra as agressões, que o sábio permitindo-se generalizações falsas, costuma fazer ao que está fora e além do seu seguro, quando bem limitado, campo de acção».

Cortesia de leiloes

Quer este, quer Raul Proença, ambos recenseadores da tese de Cortesão, acompanham o autor nas críticas ao cientismo e à visão determinista dos fenómenos sociais. Jaime Cortesão procura denunciar e criticar as desvantagens e os perigos de uma visão simplificadora de que Sousa Martins é simultaneamente «utente e vítima». Raul Proença corrobora o sentido da crítica de Cortesão e considera que Sousa Martins, numa análise puramente científica, ataca «o génio no que tem de mais livre e de mais criador». Um homem de génio não poderia ser considerado um degenerado apenas porque nele existiam desvios à dita normalidade ou vulgaridade, correndo o risco de considerar a sua espontaneidade e liberdade criadora como comportamentos e desvios patológicos. Proença acaba por fazer da sua recensão crítica «um pretexto para um verdadeiro ajuste de contas com todo o seu passado positivista e naturalista» e desvenda um Cortesão que vai além do simples autor de uma tese de Medicina. Elogia o artista, o poeta, o homem superior com virtudes que o aproximam da genialidade. Considera-o «uma energia cósmica, um fogo anímico, uma alma em chamas, uma torrente que se precipita».

Cortesia de leituragulbenkian

Mas Cortesão, para além destas incursões poéticas, empreende uma sistemática contestação à teoria de Sousa Martins, procurando demonstrar que este designou Antero de degenerado, consubstanciando-se apenas no princípio de que ele fugia à «média humana» e que esse desvio seria sempre negativo e doentio. A clara defesa de Antero e a procura da sua reabilitação moral resultam também da admiração que Cortesão sente pelo Poeta, pelo «divino Antero», como o considera, porque nele as leis da história identificavam-se com as da consciência e encarava a santidade cívica como «a última realização da liberdade». In Elisa Neves Travessa, Jaime Cortesão, ASA Editores, 1ª edição, Setembro de 2004, ISBN 972-41-4002-4, obra adquirida e autografada em Fevereiro de 2006.

Continua.

Com a amizade de ENT.
Elisa Neves Travessa/Edições ASA/JDACT