Cortesia de mitografias
Com a devida vénia a Jamal Elias, Edições 70, Novembro de 2010, ISBN 978-972-44-1637-3.
O Islamismo na sociedade e no quotidiano
Escusado será dizer que, enquanto imigrante muçulmano nos Estados Unidos, há inúmeras coisas do lugar onde passei a maior parte da minha juventude de que sinto a falta. Cheguei à conclusão de que a saudade mais profunda que tenho sentido durante todo o tempo em que vivi em Nova Inglaterra não é nem ambiental, nem arquitectural, nem culinária, nem social (embora saudades dessa natureza estejam também presentes): é a ausência de um som, o do chamamento islâmico à oração, ou udhan (por vezes, azan). Uma das mais distintas caracteísticas de qualquer paisagem social muçulmana é o facto de cinco vezes por dia se poder ouvir o apelo intenso de uma voz humana que marca o tempo da oração. Em muitas culturas este som é musicaÌ, em algumas regiões de África não o é de uma forma consciente, mas em toda a parte o significado das palavras árabes é instantaneamente reconhecível:
- Deus é Grande! Deus é Grande! Deus é Grandel Deus é Grande! Sou testemunha de que há só um Deus ! Sou testemunha de que há só um Deusl Sou testemunha de que Maomé é o mensageiro de Deusl Sou testemunha de que Maomé é o mensageiro de Deus! Vinde à oração! Vinde à oração! Vinde à salvação! Vinde à salvaçãol Deus é Grand! Deus é Grande! Há só um Deus!
O adhan é entoado um pouco antes do início das cinco orações rituais diárias, que podem ser feitas numa mesquita - um edifício destinado a esse fim - ou, como acontece mais frequentemente, em casa. À semelhança do que acontece com os membros de outras comunidades religiosas, a maioria dos muçulmanos não segue rigidamente o ritual religioso, fazendo as suas orações com alguma irregularidade. Mas mesmo para os muçulmanos que não rezam frequentemente, o adhan marca a passagem do tempo ao longo do dia (bastante à semelhança do que acontece com os sinos das igrejas de muitas comunidades cristãs) e serve para lembrar constantemente a quem o ouve de que vive numa comunidade muçulmana. Igualmente importante é o facto de a língua árabe utilizada para o adhan evocar directamente uma ligação ao Alcorão, a escritura islâmica que os muçulmanos acreditam ser a palavra literal de Deus, e que portanto reafirma a Sua contínua presença na vida humana. A consciência da ligação à Escritura que o adhan representa foi-me incutida, ao longo da infância e adolescência, pelos meus pais, que paravam de comer e beber quando ouviam o chamamento à oração e interrompiam todas as conversas ociosas até que este terminasse. Durante a minha infância, simultaneamente, respeitava o adhan pelo seu significado religioso, considerava-o uma intromissão na minha rotina (por exemplo, os meus pais diziam-me para desligar a música quando o adhan soava) e aprendi a ignorá-1o o suficiente para não acordar com o primeiro do dia, que se faz ouvir um pouco antes do nascer do sol. Hoje, quando saio de minha casa, situada numa encantadora povoação onde nem os sinos das igrejas são autorizados a perturbar o sossego, e viajo até cidades muçulmanas para efectuar pesquisas ou para visitar amigos e familiares, sou sempre acordado pelo adhan da manhã. É uma intromissão bem-vinda na minha rotina, um som que considero tranquilizante e emocionantemente evocativo.
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O mundo muçulmano hoje
O Islamismo é uma religião com cerca de 1 bilião de seguidores no mundo, com populações estabelecidas em todos os continentes habitados do planeta. Um século após o seu aparecimento na Península Arábica, no século VII da era cristã., podiam encontrar-se comunidades muçulmanas a viver na Ásia, na África e na Europa. Foi através dos centros de estudo islâmicos e do trabalho dos eruditos muçulmanos que muito do pensamento grego chegou à Europa cristã. os cientistas muçulmanos contribuíram grandemente para o avanço da ciência, por exemplo, através da introdução do sistema algébrico. do número zero, e das órbitas elípticas na astronomia. A importância dos muçulmanos no desenvolvimento da cultura mediterrânica ocidental pode detectar-se em algumas palavras de origem árabe que fazem parte do inglês actual (e de que existem bastante mais eremplos em espanhol e português): álgebra, arroz, almirante…
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Uma característica notável da história islâmica é o facto de que, com apenas uma única excepção significativa, todas as terras-onde o Islamismo se espalhou permaneceram muçulmanas até aos dias de hoje. A excepção são Espanha e Portugal, onde o longo processo da reconquista cristã, a que se seguiu a Inquisição, levou à erradicação sistemática da população muçulmana da região. Mesmo assim, quando o édito para a expulsão final dos muçulmanos e dos judeus foi decretado, em 1619 (127 anos após o final da Reconquista, em 1492), cerca de dois milhões de muçulmanos fugiram do reino de Castela, o que revela até que ponto o Islamismo se tinha integrado na vida espanhola.
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O Islamismo continua a ser a religião maioritária em países tão diversos como Marrocos, a ocidente, a Indonésia, a oriente, e do Senegal, no sul, ao Cazaquistão, no norte. Em cada um destes países o Islamismo é praticado de uma forma diferente, sendo estas diferenças particularmente evidentes no modo como as pessoas se vestem e nos costumes que rodeiam acontecimentos da vida como o nascimento e o casamento. É assim que os muçulmanos bósnios vivem a sua vida com costumes que têm mais a ver com os dos seus vizinhos cristãos do que com os dos muçulmanos do Paquistão, e que os muçulmanos da Indonésia incorporaram muitos elementos da mitologia hindu na sua vida religiosa. Noutras países do mundo, os costumes muçulmanos locais reflectem a necessidade que os muçulmanos sentem de se diferenciarem dos seus vizinhos não-muçulmanos. Por exemplo, os muçulmanos indianos comem determinados alimentos e evitam usar certas cores e flores durante os seus casamentos com o fim específico de manterem as diferenças que os distinguem da maioria hindu. É, portanto, possível falar em numerosas «linhas de fractura» de identidade ao longo das quais se podem diferenciar os muçulmanos, sendo estas linhas a língua, a etnia, a raça, a nacionalidade, o sexo, as atitudes em relação ao mundo moderno, a experiência com o colonialismo, a idade, o estatuto económico, a classe social, a identidade sectária, etc.
Qualquer afirmação acerca das crenças muçulmanas que se reivindique universal acabará inevitavelmente por ser refutada pela existência de excepções algures no mundo muçulmano.
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Apesar disso, a maioria dos muçulmanos mantém uma notável semelhança nos seus rituais. Facto que é reforçado pela quase universal utilização do árabe como língua de oração e liturgia. Para além disso, embora os muçulmanos possuam um sentido de nacionalismo e patriotismo tão altamenie desenvolvido como quaisquer outros povos, muitos deles conservam a ideia de que todos pertencem a uma só comunidade, ou umma. Por essa razão, os cidadãos muçulmanos de determinada região ou país cumprimentarão os seus irmãos muçulmanos de sociedades distantes e em nada relacionadas com a sua com um calor e um sentido de parentesco religioso que é muito raro em muitas outras comunidades religiosas. E mesmo quando alguns muçulmanos, em particular os activistas com urn entendimento extremamente politizado do Islamismo, criticam outros muçulmanos ao ponto de os considerarem não-crentes ou apóstatas, quando esses muçulmanos que criticam enfrentam uma ameaça externa (como na Bósnia), é frequente o primeiro grupo suspender as suas críticas e oferecer a sua simpatia para ajudar os muçulmanos que necessitam de apoio.
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A característica central partilhada por todos os muçulmanos é a sua crença num Deus que enviou uma revelação oral chamada Alcorão por intermédio de um profeta humano chamado Maomé, que nasceu por volta de 570 d.C. na cidade árabe de Meca e morreu na cidade próxima de Medina em 632 d.C. Os modos específicos como a identidade de Deus, a natureza da revelação e o conceito de profecia são entendidos, têm variado ao longo do tempo e em contextos diferentes, mas a centralidade destes elementos que definem a identidade islâmica não mudou.
Deus é normalmente referido pelo Seu nome árabe, Alá, muito provavelmente derivado de al-ilah, que significa, literalmente, «O Deus». E também frequentemente chamado «al-Rabb», que em árabe quer dizer «o Senhor». É igualmente muitas vezes referido através da palavra genérica que as varias línguas faladas pelos muçulmanos utilizam para designar Deus (por exemplo, «Khuda» nas línguas indo-iranianas e «Tanri» ou «Tengri» nas turcas). Os estudiosos ocidentais do Islamismo têm por vezes representado o Deus muçulmano como um Deus severo e furioso, e o relacionamento dos seres humanos para com ele de uma servidão em larga medida motivada pelo medo do castigo e, em segundo lugar, pelo desejo de recompensas sensuais no paraíso.
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Para muitos muçulmanos, no entanto, as caracteísticas fundamentais de Deus são a sua misericórdia e a sua compaixão envolventes; a atitude ideal que os seres humanos deveriam ter para com Ele não deveria ser de obediência ditada pelo medo mas de gratidão. Os muçulmanos devotos procuram iniciar cada actividade, desde o ritual religioso às actividades mundanas, como a ida à rnercearia, com a fórmula «Em nome de Deus, o Compassivo, o Misericordioso». Esta frase marca a abertura de capítulos do Alcorão e tem sido usada para iniciar correspondência formal ao longo da história islâmica.
Para muitos muçulmanos pode encontrar-se provas da misericórdia e compaixão de Deus em todas as coisas, desde a maravilhosa complexidade do universo ao próprio facto da existência humana. Um dos mais eloquentes capítulos do Alcorão intitula-se «O Misericordioso» (Capítulo 55); através da rima e da métrica, são catalogadas algumas das maravilhas criadas por Deus e é expresso um assombro retórico pela capacidade que os seres humanos têm para negar a generosidade de Deus:
- O Clemente! Ensinou o Alcorão. Criou o homem, E ensinou-lhe a eloquência. O sol e a lua giram (em suas órbitas). E as ervas e as árvores prostram-se em adoração. E elevou o firmamento e estabeleceu a balança da justiça. para que não defraudeis no peso. Pesai, pois, escrupulosamente, e não diminuais a balança! Aplainou a terra para as (Suas) criaturas, na qual há toda a espécie de frutos, e tamareiras com cacho, e as graníferas, com a sua palha, e as odoríferas. - Assim, pois, quais das mercês de vosso Senhor desagradeceis? (55: l-13)
Em viários outros pontos do texto, o Alcorão fala da miseriçórdia de Deus:
- E vos agraciou com tudo quanto Lhe pedistes. E se contardes as mercês de Deus, não podereis enumerá-las. Sabei que o homem é iníquo e ingrato por excelência. (14:34)
Face à espantosa bondade de Deus, a desobediência a Deus torna-se sinónimo de negação da Sua generosidade, sendo, por conseguinte, o mal e a ingratidão a mesma coisa. A semelhança do Alcorão, muitos escritos teológicos islâmicos encaram todo o universo como se este estivesse num estado de obediência à lei de Deus; a palavra Islamismo designa literalmente este estado de entrega total. Os seres humanos são as únicas criaturas que têm a capacidade de desobedecer, fazendo-o ao pensarem arrogantemente que são auto-suficientes e que não precisam do apoio e da orientação de Deus.
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Uma tradição islâmica, muito repetida, afirma que Deus está mais próximo de uma pessoa do que a sua veia jugular, dando a entender que Deus permeia o cosmos. Há sistemas islâmicos de observância ritual que partem do princípio que existe um Deus atento e vigilante que escuta e cuida de cada uma das Suas criaturas. Por todo o mundo islâmico correm notícias de histórias miraculosas contando como o nome de Deus ou a profissão de fé islâmica aparece no desenho das escamas de um peixe, ou como o balido de uma determinada ovelha soa como se o animal estivesse louvando a Deus. O amrlho de uma pomba soa a «Ele! Ele!» em árabe, e no Paquistão, uma perdiz canta «Glória à Tua criação!» Estas histórias têm alguma semelhança com as que se podem encontrar no mundo cristão (incluindo os Estados Unidos), mas as versões islâmicas sublintram a crença muçulmana de que Deus permeia o universo e que continua intimamente envolvido na sua manutenção e cuidado, e, por conseguinte, também nas nossas vidas.
Muitos muçulmanos vêem o Islamismo como uma submissão à lei Divina, e a tudo o que se submeteu a esta lei chamam muçulmano (fem. muçulmana). Os seres humanos religiosos e devotos preferem frequentemente as palavras muhsin e mu'min, sendo o primeiro termo aplicado a alguém que pratica boas acções, que é recto e caridoso, e o último a alguém que crê ou tem fé. A palavra que designa a fé, iman, está estreitamente relacionada com as palavras segurança e confiança, pelo que, para muitos muçulmanos, ter fé, implica automaticamente estar sob a protecção de Deus, na segurança dos princípios de orientação por Ele concedidos.
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A crença na singularidade de Deus é chamada tawhid, que significa não apenas a unidade divina mas também o acto pessoal de afirmar essa unidade. A palavra que significa devoção (taqwa) possui também conotações de força e concessão de poder. Os muçulmanos consideram que a sua relação com Deus é íntima e que a criação dos seres humanos por Deus é uma dádiva Divina, que as Suas leis e castigos não são uma calamidade mas um acto de graça destinado a orientá-los nesta vida. Muitos muçulmanos mantêm a crença de que a nossa vida neste mundo é na realidade um teste para uma vida eterna depois da morte. Deus deu-nos uma orientação clara através da escritura e dos profetas, pelo que, se mesmo assim optarmos por Lhe desobedecer, merecemos todas as formas de sofrimento que nos esperem na outra vida. In Islamismo.
Cortesia de Jamal Elias/Grupo Almedina/JDACT