Para viver o sem-fim da eternidade
«Quem
segue a pé de Chinatown em direcção ao Distrito Financeiro de Nova Iorque
tarvez passe distraído pero número 55 de St. James Place, pelos 22 metros de
comprimento de um muro baixo feito de pedras sobrepostas, encimado por grades pontiagudas
e enferrujadas. Por trás dele, nada de excepcional parece chamar a atenção no
pequeno descampado estabelecido metro e meio acima da calçada, o solo coberto
de musgo e ervas daninhas. À primeira vista, aparenta ser apenas um terreno baldio,
simples vazio urbano dando para os fundos deteriorados de prédios populares de
três e cinco andares. Assim de passagem, só mesmo uma singular dose de atenção
e curiosidade discernirá a praça rectangular disposta no solo do outro lado, as
letras em alto-relevo recobertas pela pátina do tempo:
PRIMETRO
CEMITÉRIO
DA
SINAGOGA
ESPANHOLA E PORTUGUESA
SHEARITH
ISRAEL
DA
CIDADE DE NOVA IORQUE
1656-1833
Shearith
Israel, nome da congregação mais antiga de Manhattan, significa Remanescente
de Israel, referência ao povo judeu, o povo que presumivelmente descende da
personagem bíblica Jacob, o último dos patriarcas, que segundo a Torá, o livro
sagrado do judaísmo, foi rebaptizado Yisrael (aquele que luta com Deus), depois
de medir forças com um anjo guardião disfarçado de ser humano. Os seus doze
filhos terão dado origem às doze tribos israelitas, ou seja, ao povo de Israel.
Se atraído pela discreta tabuleta, o observador mais atento perceberá que os
blocos cinzentos dispostos de modo simétrico no terreno, do outro lado do
gradeamento, são na verdade velhos túmulos e lápides funerárias, alguns deles
quase ocultos pela vegetação rasteira. As inscrições dos jazigos, obscurecidas
por sucessivas camadas de fuligem e poeira, revelam na sua maioria caracteres
em hebraico.
À
esquerda, outra placa metálica, ainda mais afectada pela oxidação
fosco-esverdeada que denuncia a ausência de manutenção, apresenta uma breve
informação adicional. Cravado num recôndito pórtico de tijolos, meio oculto
pela gambiarra dos fios expostos que saem da parede do prédio vizinho, o
letreiro indica que ali está o que resta do primeiro cemitério judeu nos
Estados Unidos, consagrado no ano de 1656, quando foi descrito como fora da
cidade.
É
difícil imaginar que uma região feérica como esta se situou, um dia, ainda que
há cerca de três séculos e meio, numa zona rural. De facto, os registos
históricos dão conta de que, muito antes de os nivelamentos, aterros e
drenagens alterarem de forma radical a topografia da ilha, as catacumbas dos
judeus se encontravam mesmo fora da cidade, jazendo no sopé da colina de uma
quinta bucólica, com vista privilegiada e imediata para o East River. Hoje, as
sepulturas de St. James Place são uma relíquia histórica quase ignorada. Até
princípios do século XIX, as dimensões do espaço eram bem maiores, embora já
não consigamos defini-las com precisão. A progressiva expansão urbana acabou
por tragar todo o espaço em redor, inclusive os próprios sepulcros, forçando a
paulatina exumação de centenas de restos mortais, transferidos para outros
locais à medida que a cidade se agigantava.
Reduzido
a menos de 200 metros quadrados de área, o terreno submergiu numa relativa
obscuridade. O cadeado no portão impede a entrada espontânea de visitantes. O
mau estado de conservação e a presença de eventuais consumidores de crach
pelas redondezas apressam o passo dos transeuntes, inibindo olhares mais
contemplativos». In Lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random House Grupo
Editorial, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.
Cortesia de PRHGEditorial/JDACT
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