sábado, 21 de agosto de 2021

Susanna Kearsley. O Segredo de Sophia. «Acabei por olhar para cima, juntamente com Jane, para a pequena caixa de metal preta fixada por cima do batente da porta, com o contador de vidro e diversos manómetros…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A Main Street de Cruden Bay inclinava-se suavemente pela encosta abaixo, virava à direita e depois novamente à esquerda, curvando até desaparecer de vista na direcção do porto. Era estreita, tinha uma linha de casas unidas entre si e algumas lojas de um lado e do outro havia um ribeiro que corria rapidamente entre as margens geladas e que passava por uma única loja, um quiosque de jornais, antes de se encontrar com a praia larga e vazia, que se estendia para lá das dunas altas cobertas de neve. A estação de correios estava bem assinalada com o sinal vermelho sobre as paredes de pedra cinzentas e com os diversos avisos que exibia na janela da frente, anunciando artigos à venda e eventos que iriam decorrer, nomeadamente uma atraente Manhã Amanteigada, que iria ser festejada no grande pavilhão local. No interior da loja havia postais, livros, algumas recordações para turistas e uma mulher que foi extremamente útil. Sim, ela sabia de um sítio na aldeia que poderia servir-me. Uma casa pequena, básica, que não tinha nada de extravagante no interior. Era da velha Mrs. Keith, antes de ela falecer, disse ela. Agora o proprietário é o irmão, mas como ele tem uma casa mais abaixo, junto ao porto, não usa esta. Arrenda-a aos turistas no Verão. Durante os Invernos não vive lá ninguém, excepto os filhos, de tempos a tempos, e eles não estão muitas vezes em casa. O rapaz mais novo gosta de viajar e o irmão está na Universidade de Aberdeen, pelo que o Jimmy Keith provavelmente terá o maior prazer em arrendar-lhe a casa durante os próximos meses. Se quiser, posso telefonar-lhe. E assim, com um pacote recém-adquirido de postais metido no bolso do casaco, segui com Jane pelo passeio, ao lado do ribeiro, até ao local onde a estrada fazia uma curva e mudava de nome para a Harbour Street. As casas eram semelhantes às da Main Street, mais acima, continuavam a ser baixas e estavam unidas entre si, e em frente a elas havia uma série de pequenos jardins, alguns com barracões, que se erguiam entre nós e a larga praia cor-de-rosa.

A partir dali conseguia ver que a praia era enorme, formando uma curva com pelo menos três quilómetros de extensão, com dunas que se erguiam como colinas mais atrás, lançando sombras sobre a praia. Um estreito passadiço de madeira branca passava sobre o rego pouco profundo do ribeiro e terminava no sítio onde começavam as dunas, mas enquanto fazia uma pausa e olhava para ele, perguntando-me se teria tempo para o atravessar, Jane disse com satisfação: ali está o caminho, e guiou-me para lá da ponte, até onde um caminho largo e lamacento se desviava da rua para subir uma colina de tamanho razoável. A mulher dos correios chamara-lhe Ward Hill. Era um promontório, alto e arredondado, que se estendia ligeiramente sobre o mar, e quando cheguei ao topo olhei para trás e vi que havíamos subido acima do nível das dunas e tínhamos uma perspectiva não só da praia, mas também das casas distantes e das colinas mais adiante. Ao virar-me novamente para trás, vi, em direcção a norte, as ruínas avermelhadas do Castelo de Slains, bem delineadas contra as falésias do promontório seguinte. Senti uma ligeira emoção. Oh, que perfeito. Não sei, disse Jane, lentamente. Parece muito triste. Ela olhava para a casa de campo, que se erguia isolada sobre a colina. Fora construída em pedra, com paredes quadradas caiadas de branco, sob um telhado de velhas telhas de ardósia cinzentas, húmidas da neve que começava a derreter. As janelas eram pequenas, tinham caixilhos de madeira e a tinta descascada, e as persianas gastas no interior estavam descidas, que nem pálpebras fechadas, como se a pequena casa de campo estivesse cansada de assistir à incessante ida e vinda do mar. Estiquei a mão para bater à porta. É apenas solitária. Também tu o serás, se morares aqui. Talvez não tenha sido uma grande ideia. A ideia foi tua. Sim, mas aquilo em que eu estava a pensar era mais uma casinha pequena e aconchegante na aldeia, perto das lojas… Esta serve bem. Bati novamente à porta. Acho que ele ainda não chegou. Tenta a campainha. Eu não tinha visto a campainha, profundamente enterrada no meio do emaranhado de uma teimosa trepadeira, com folhas minúsculas que estremeciam de cada vez que o vento soprava do mar. Estendi a mão para carregar na campainha, mas a voz de um homem, proveniente do caminho atrás de mim, advertiu-me: não servirá de nada, não toca. O sal do mar dá cabo dos fios, mais rápido de que eu os arranjo. Além disso, disse o homem, à medida que se aproximava de nós: nã estou na casa para vos ouvir, pois nã? O sorriso dele tornou o seu rosto áspero, quase feio, imediatamente agradável. Deveria ter bem mais de sessenta anos, com o cabelo branco, a constituição física e a compleição rosada de alguém que trabalhara duramente ao ar livre durante toda a vida. A mulher dos correios parecera segura de que eu gostaria dele, embora me tivesse avisado de que poderia passar por algumas dificuldades para o entender. Ele fala dórico, dissera ela. É a língua desta região. É provável que tenha alguma dificuldade em entender o que ele diz. Na verdade, não senti qualquer dificuldade. O seu discurso era carregado e rápido, e se eu tivesse de traduzir todas as palavras poderia ter sentido alguns problemas, mas não era difícil apanhar o sentido geral do que ele queria dizer quando falava.

Estendi a mão e disse: mr. Keith? Obrigada por vir até aqui. Eu sou Carrie McClelland. É um prazer conhecer-vos, o seu aperto de mão era forte. Mas não sou mr. Keith. O meu pai era mr. Keith, e ele está morto e enterrado há vinte anos. Chamem-me Jimmy. Então, Jimmy. Jane apresentou-se de imediato, nunca satisfeita quando a mantinham durante muito tempo fora da acção. Não me afastou propriamente para o lado, mas, afinal de contas, era uma agente e, apesar de provavelmente nem sequer se aperceber disso, gostava de assumir o controlo da situação sempre que decorria uma negociação. Na verdade, não foi agressiva, mas liderou a conversa, e eu escondi o meu sorriso e deixei-a comandar a situação, satisfeita por seguir atrás deles, enquanto Jimmy Keith enfiava a chave na fechadura da porta de casa e depois, com um ligeiro abanão e o som do trinco, a fez balançar para dentro, raspando os ladrilhos do chão. A minha primeira impressão foi de uma obscuridade geral, mas quando levantaram as persianas com um chocalho e abriram as cortinas desbotadas, consegui ver o interior da casa. Apesar de não ser grande, era confortável, uma sala de estar, com finos tapetes persas no chão, duas poltronas e um sofá, e uma longa mesa de madeira limpa encostada à parede mais distante, com as cadeiras da cozinha em madeira colocadas em seu redor. A cozinha fora instalada numa extremidade da casa e tinha o aconchego da cozinha de um navio. Não tinha muitos armários, não tinha uma grande bancada, mas tudo estava no seu lugar e era útil, desde o lava-louça com o escorredor inoxidável incorporado, até ao fogão eléctrico de pequenas dimensões que tinha, imaginei, ocupado o lugar do antigo fogão a carvão que se mantinha sólido na sua alcova da chaminé na parede de trás. O fogão a carvão, assegurou-me Jimmy, ainda funcionava. É um pouco contumaz…, é difícil…, mas ainda aquece a sala, e poupa electricidade. Jane, que estava de pé junto à porta da frente a olhar para cima, fez uma observação sobre como isso iria dar jeito. Sabes, disse ela, nunca mais tinha visto um destes desde que arrendei o meu primeiro apartamento.

Acabei por olhar para cima, juntamente com Jane, para a pequena caixa de metal preta fixada por cima do batente da porta, com o contador de vidro e diversos manómetros. Já tinha ouvido falar daquelas engenhocas, mas nunca tinha visto ou usado nenhuma. Jimmy Keith olhou também para cima. É bem verdade, concordou. Já nã se vê disso. Eram precisas moedas de 50 pence, explicou, e inseriam-se como num parquímetro, pois sem moedas não haveria electricidade. Mas não se incomode, prometeu. Vendia-me um pacote de moedas e, depois de eu as ter usado todas, viria abrir o contador, retirava-as e voltava a vender-me as moedas. Jane olhou desconfiada para o contador uma última vez e virou-se para continuar a inspecção. Não havia muito mais para ver, apenas um quarto, não muito grande, nas traseiras, e uma casa de banho inesperadamente espaçosa, situada em frente desse quarto, que tinha uma banheira de pés e aquilo a que os Britânicos chamavam um armário de arejamento, com prateleiras abertas em redor de uma caldeira amarela, bom para guardar toalhas e secar as roupas. Jane avançou até se colocar a meu lado. Então? Gosto dela. Não tem muita coisa. Não preciso de grande coisa quando estou a trabalhar. Ela pensou por momentos, de seguida virou-se para Jimmy Keith. Que renda estava a pensar pedir?» In Susanna Kearsley, O Segredo de Sophia, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-944-5.

Cortesia de ASA/JDACT

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