Isabel. Maio de 1588
«(…) Tinha guardado aquele
retrato para me lembrar dos seus sofrimentos e também dos seus erros, não para
julgar sua alma. Uma lembrança sempre triste com o leve brilho de esperança no
seu olhar e a boca retorcida como se guardasse um segredo. Ostentava no peito
um broche com uma pérola creme em forma de lágrima, presente de seu esposo,
Filipe. Mas seria uma ilusão da luz agora? O olhar não estava nada melancólico,
mas sim dissimulado. A curva da boca expressava ironia. O retrato todo pulsava
com um brilho avermelhado, como se demónios o estivessem iluminando. Ela havia
trazido o demónio espanhol para nossa costa, ligando-nos àquele país. A
comitiva de casamento de Filipe, na sua Armada, chegara em Julho, há trinta e
quatro anos, e agora retornava para terminar o que havia começado no casamento
de Maria em 1554: fazer com que a Inglaterra retornasse ao rebanho papal. Devia
guardar o retrato n’outro lugar. E quanto à pérola, por mais cara que fosse,
tinha trazido uma maldição consigo. Devia voltar ao dono original. Nem mesmo
vendê-la faria com que conseguisse livrar-me dela. Quando tudo isso acabar...,
quando tudo isso acabar, Filipe terá sua maldita pérola de volta. Ela matou
minha irmã e agora estava contaminando o meu quarto. O brilho do sol
desapareceu, e o quadro voltou ao normal, a tonalidade demoníaca sumira. O
rosto de minha irmã voltou a ser daquela jovem orgulhosa e cheia de esperança
que havia recebido Filipe como esposo. Marjorie e Catherine estavam logo atrás
de mim, diplomaticamente silenciosas, mas muito provavelmente perguntando-se o
que eu estaria fazendo. Virei-me e disse: devemos nos preparar para dormir.
Gostaria que ficassem comigo, mas devo enviar as
jovens para bem longe até que o perigo tenha passado. Havia nomeado o marido e
o filho de Marjorie, os soldados Norris,
chefes das forças em terra do sueste, e o marido de Catherine comandante-geral tanto
das forças em terra como em mar. Além disso, o pai dela, lorde Hunsdon, deveria
cuidar da nossa segurança pessoal. Temo que estejamos juntas nisso: minha
Gralha e minha Gata. Constrangida, voltei a usar os antigos apelidos que um dia
lhes dei: Marjorie, com olhos e cabelos escuros e voz rouca, chamei de Gralha. Minha
gentil, quieta e ronronante Catherine era minha Gata. Deitei-me na escuridão
que no começo do Verão nunca é tão escura assim. Os sons habituais de
felicidade tinham desaparecido do rio que corre pelo palácio. O reino vivia um momento
de tensão. Nada se movia nem por água nem por terra.
Essa era a nossa situação actual.
Será que eu poderia ter evitado tudo isso de alguma maneira, tomando um rumo
que nos conduziria a um caminho diferente, talvez a um destino mais seguro? Não
se quisesse manter-me fiel a quem era. O meu nascimento
sancionara a entrada do protestantismo em meu país. Renunciá-lo ao chegar à
idade adulta seria negar meus pais e rejeitar o meu destino. Sabia em primeira
mão o que isso significaria, pois vi minha irmã passar esse
dilema. Ao submeter-se a nosso pai e concordar que o casamento de sua mãe era
inválido e ela própria filha bastarda, acabou por espezinhar suas
mais profundas crenças. Odiando a sua fraqueza por ter cedido, ela tentou
acalmar sua consciência e desfazer o dano depois. O resultado foi a tentativa
infeliz de voltar a impor o catolicismo à Inglaterra. Isso trouxe muita
crueldade, ainda que ela não fosse por natureza uma mulher cruel. A consciência
ferida de um governante cobra um preço muito alto de seus súbditos. O destino
havia me lançado como símbolo do protestantismo. Portanto, era apenas questão
de tempo até que os defensores da antiga crença me confrontassem». In
Margaret George, Isabel I, O Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas,
Geração Editorial, 2012, ISBN 978-858-130-076-4.
Cortesia de GeraçãoE/JDACT
JDACT, Margaret George, História, Literatura, Saber,