«(…) É sempre a mesma história. Para uns, muito; para outros, pouco; e para outros, nada! Quando é que essa gente aprende a pagar aquilo de que precisamos para viver? Adriana suspirou. Tia Amélia era intratável em assuntos de dinheiro, de patrões e empregados. Não que fosse invejosa, mas indignava-a o desperdício que vai por esse mundo, quando milhões de pessoas sofrem fome e miséria. Ali, em casa, não havia miséria, e a mesa tinha comida a todas as refeições, mas havia a rigidez do orçamento apertado, donde fora excluído todo o supérfluo, até aquele supérfluo necessário sem o qual a vida do homem se processa quase ao nível da dos animais. Tia Amélia insistiu: é preciso falar, Adriana. Há dois anos que estás na casa e o ordenado mal chega para os eléctricos. Oh, tia, mas que hei de eu fazer? Que hás-de fazer? Põe-te a olhar para mim, assim, com esses olhos espantados! A frase doeu a Adriana como uma pancada. Isaura olhou a tia com severidade: tia! Amélia virou-se para ela. Olhou depois Adriana e disse: desculpem. Levantou-se e deixou a sala. Adriana levantou-se também. A mãe fê-la sentar-se: não faças caso, filha. Tu sabes que é ela que faz as compras. Mata a cabeça para o dinheiro chegar e o dinheiro não chega. Vocês ganham, trabalham, mas ela, coitada, é que se rala. Só eu é que sei. Tia Amélia apareceu à porta. Parecia comovida, mas nem por isso a voz foi menos brusca, ou talvez por isso mesmo não o pudesse deixar de ser: querem uma chávena de café? (Como nos antigos tempos... Uma chávena de café! Venha, pois, a chávena de café, tia Amélia! Sente-se aqui, ao pé de nós, assim, com esse rosto de pedra e esse coração de cera. Beba uma chávena de café e amanhã refaça as suas contas, invente receitas, suprima despesas, suprima mesmo esta chávena de café, esta inútil chávena de café!)
O serão
recomeçou, agora mais arrastado e silencioso. Duas mulheres velhas e duas que
já voltavam costas à mocidade. O passado para recordar, o presente para viver,
o futuro para recear. Perto da meia-noite o sono introduziu-se na sala. Alguns
bocejos. Cândida alvitrou (era sempre dela que vinha este alvitre): e se nos
fôssemos deitar? Levantaram-se, com um rumor de cadeiras arrastadas. Como de
costume, só Adriana se deixou ficar para dar tempo a que as outras se
deitassem. Depois, arrumou a costura e entrou no quarto. A irmã lia o romance.
Tirou da mala um molho de chaves e abriu uma gaveta da cómoda. Com outra chave
mais pequena abriu uma caixa e retirou de dentro um caderno grosso. Isaura
olhou por cima do livro e sorriu: lá vai o diário! Um dia hei-de ver o que
escreves nesse caderno. Não tens esse direito!, respondeu a irmã, de mau modo. Pronto!
Não te assanhes... Às vezes, dá-me vontade de to mostrar, só para não estares
sempre a falar na mesma coisa! Aborreço-te? Não, mas podias calar-te. Acho que
é muito feio estares sempre com esses ditos. Ou não terei o direito de guardar
o que me pertence? Os olhos de Adriana, por detrás das lentes espessas,
rebrilhavam irritados. Com o caderno apertado contra o peito, enfrentava o
sorriso irónico da irmã. Pois sim, disse Isaura. Vai lá escrevendo. Há-de
chegar o dia em que tu própria hás de mostrar o caderno para eu ler. Vai
esperando, respondeu Adriana. E saiu do quarto. Isaura acomodou-se melhor
debaixo da roupa, colocou o livro em ângulo propício para a leitura e esqueceu
a irmã. Esta, depois de passar pelo quarto, já às escuras, onde dormiam a mãe e
a tia, fechou-se na casa de banho. Só ali, protegida pelo local contra a
curiosidade da família, se sentia bastante segura para escrever no caderno as
suas impressões do dia. Começara a escrever o seu diário pouco tempo depois de
se empregar. Escrevera já dezenas de páginas. Sacudiu a caneta e começou:
Quarta-feira, 19/3/52, à meia-noite menos cinco.
Tia Amélia está hoje mais rabugenta. Detesto que me falem no pouco que ganho.
Ofendem-me. Estive quase para responder-lhe que ganho mais que ela.
Arrependi-me antes de ter falado e ainda bem. Tia Amélia, coitada... Diz a mãe
que se mata a fazer contas. Acredito. É o que se passa comigo. Esta noite
ouvimos a 3.ª Sinfonia de Beethoven. A mãe disse que era bonito, eu disse que
era belo e tia Amélia concordou comigo. Gosto da tia. Gosto da mãe. Gosto da
Isaura. Mas o que elas não sabem é que eu não estava a pensar na sinfonia ou no
Beethoven, quer dizer, não estava a pensar nisto só... Também pensava... Até me
lembrei da máscara de Beethoven e no meu desejo de a ter... Mas também pensava nele. Estou contente, hoje. Falou-me
muito bem. Quando me deu as facturas para eu conferir, tocou com a mão direita
no meu ombro. Gostei tanto! Fiquei toda a tremer por dentro e senti-me corar
até às orelhas. Tive que baixar a cabeça para ninguém ver. O pior foi depois.
Julgou que eu não ouvia e começou a falar com o Sarmento a respeito de uma
rapariga loira. Não chorei porque parecia mal e porque não quero
comprometer-me. Ele brincou com a
rapariga durante uns meses e depois deixou-a. Meu Deus, será o mesmo comigo?
Ainda bem que ele não sabe que gosto
dele. Era capaz de fazer pouco de mim. Se assim fosse, matava-me! Aqui
interrompeu-se, mordiscando a ponta da caneta. Tinha escrito que estava
contente e agora já falava em matar-se. Achou que não estava bem. Pensou um
pouco e fechou com esta frase: gostei
tanto que ele me tivesse tocado no ombro!» In José Saramago, Claraboia,
1953, Editorial Caminho, 1991, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
Cortesia ECaminho/JDACT
JDACT, José Saramago, A Arte da Escrita, Literatura,