domingo, 15 de agosto de 2021

O Segredo da Bastarda. Cristina Norton. «Mas nem tudo podia pertencer ao mundo da fantasia. Gregório tinha chegado ao continente americano com algumas luzes, Pedro ainda sabia pouca coisa e Diogo, entre viagem, adaptação e os nascimentos…»

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Brasil

«(…) Antes de acabar a quarentena, engravidou outra vez. Desta teve enjoos, dores de cabeça, quebras de tensão e, no momento do parto, as coisas pareceram complicar-se de tal maneira que a parteira decidiu recorrer aos grandes remédios. Mandou uma escrava prevenir o padre, que por sua vez mandou o sacristão tocar o sino da igreja nove vezes, enquanto outras mulheres calcorreavam Vila Rica procurando nove meninas virgens chamadas Maria, que deviam rezar nove ave-marias para que tudo batesse certo e a mulher do governador pudesse dar à luz o seu filho sem risco de vida para nenhum dos dois. As escravas bateram a várias portas sem grande resultado, porque, ainda que encontrassem Marias com fartura, ou não possuíam hímen, ou não sabiam dizer as orações. O que se pensou que demorasse meia hora levou tanto tempo que o último filho, José Tomás, nasceu antes que conseguissem reunir as nove meninas. De qualquer forma, o expediente não teria resultado, porque o padre, convencido de que era mais fácil encontrar as meninas, apressou o acólito a dar as badaladas, e esse meio só era eficaz se tudo se fizesse ao mesmo tempo. Maria José, debilitada por três gravidezes em tão pouco tempo, viu-se obrigada a recorrer a uma ama, porque não tinha leite suficiente para dar de mamar a dois filhos e preferiu reservar o seu para o recém-nascido. Custou-lhe entregar Isabel ao peito de uma desconhecida, ainda que a sua condição lho permitisse, não só por uma questão de posses, mas porque a legislação concedia esse privilégio às fidalgas. Havia mulheres do seu meio que não prescindiam mesmo desse direito e secavam o leite pondo folhas de sabugueiro enxutas sobre os seios. Mas ela não partilhava dessas ideias nem achava que amamentar lhe estragasse o peito, pelo contrário, sentia-se mais perto dos filhos quando lhes dava de mamar e, sempre que Rodrigo assistia a esse momento quase mágico, um elo de ternura envolvia-os a ambos. Procurou saber tudo sobre as amas, escolhidas entre as brancas e portuguesas, desde o estado de saúde, não só do corpo como também da alma, até ao lugar onde tinham morado desde a infância e se eram felizes, porque achava que o leite devia azedar com as agruras da vida. Descartou as que não preenchiam os requisitos e contratou uma que caiu nas suas graças pelo sorriso amplo e o olhar luminoso, não tinha a opulência das outras, mas da alimentação se encarregariam na cozinha por ordens estritas suas, não fosse comer algo que desarranjasse os humores da sua filha.

Entretanto, Gregório, Pedro, Diogo e Eugénia sentiam que lhes tinham crescido asas nos braços e nas pernas e, de tanto andarem em liberdade, começaram a perder a cor branca de cera que tinham trazido do reino e adquiriram um suave tom dourado, porque, mesmo obrigados a usarem chapéu, o ar morno parecia bronzeá-los ao passar ao de leve pelos corpinhos que cresciam e espigavam como trigo. Conheceram o prazer de provar frutos exóticos, arrancados das árvores, ainda quentes do sol, o sumo a escorrer pelos bracinhos finos que iam lavar rapidamente ao riacho ou à fonte, para que ninguém suspeitasse de que passavam o dia a comer coisas proibidas, desrespeitando as horas impostas de intervalo entre o almoço, às nove da manhã, e o jantar, às três da tarde. O pior era quando tinham de esconder alguma dor de barriga ou a falta de apetite com a desculpa de que o sono os vencia, esperando que os mandassem dormir a sesta e só tivessem de voltar a sentar-se à mesa à hora do chá, pelas sete, quando o Sol se punha. Aprenderam a brincar com o que a natureza lhes proporcionava, faziam exércitos de escaravelhos, seguiam os trilhos das formigas, partiam à descoberta de aves raras de cores nunca vistas sem terem praticamente de se afastar da casa. Os macacos amestrados para lhes tirarem os piolhos, em vez de fazerem o seu trabalho, corriam atrás deles e roubavam-lhes insectos, folhas secas, vagens e sementes que eles guardavam em esconderijos como se fossem pequenos tesouros. Certos dias faziam de conta que o topo de uma árvore era a torre de vigia de um navio e davam ordens a uma armada imaginária que navegava nas ondas da floresta para que atacasse os barcos de piratas que tentavam invadir o seu reino.

Mas nem tudo podia pertencer ao mundo da fantasia. Gregório tinha chegado ao continente americano com algumas luzes, Pedro ainda sabia pouca coisa e Diogo, entre viagem, adaptação e os nascimentos dos irmãos mais novos, já passara da idade em que se começava normalmente a aprendizagem: sete anos. Ao tomar consciência de que tinha omitido no rol das suas obrigações essa parte importante da formação dos filhos, Rodrigo mandou o seu secretário procurar o melhor preceptor e que não demorasse a cumprir com o que lhe pedia. Nem incomodou a mulher com a escolha, via-a demasiado atarefada com bebés, amas e costumes aos quais tinha dificuldade em adaptar-se. Apresentou-se um homem com cartas de recomendação de famílias respeitáveis e, pelo trato e a maneira como respondia às suas perguntas, contratou-o de imediato». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

Cristina Norton, Escrita, JDACT, Literatura, Narrativa, MLCT, MLAC,