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A Torre.
«Em 7 de Janeiro de 1325 faleceu D. Dinis em Santarém, com 64 anos. O infante D. Afonso, avisado pela mãe, Isabel de Aragão, veio expressamente de Leiria, onde se encontrava regularmente, como em retiro, depois dos frontais embates de 1321-1322. O rei adoeceu com o Outono e viu o Tejo com rabanadas de folhas. As árvores tinham adormecido e o Inverno anunciava-se frio. O rei foi transportado numa cadeirinha improvisada para Santarém onde ordenou que o seu corpo fosse sepultado no mosteiro de S. Dinis, termo de Odivelas, que tinha sessenta freiras da Ordem de Cister com voto de encerramento e cogula.
Passou os últimos dias a olhar as inúmeras várzeas que se estendiam além de Almeirim, com a melancolia própria de quem antes tinha escrito versos. Ele próprio agora, quase inconscientemente, no meio dos mais inesperados sonhos, se perguntava «ai Deus, e u é?».
O infante D. Afonso não assumiu de imediato os assuntos do reino. A transição entre o estatuto do infante e a situação de rei era por vezes penosa e a mais das vezes passava por inglórias batalhas entre parentes. Por isso, o infante partiu nesse Inverno, logo depois da morte de Dinis, para Sintra, com monteiros adolescentes e perros castanhos com focinhos ágeis e lombos esgalgados. Não levava charamelas e aquilo que o acompanhava não era de modo nenhum, uma corte, mas um circo de batedores habituados a correr até à Roca. Tinha o infante a inesperada e fatídica idade de 33 anos.
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A serra era um território pedregoso e lunar, coberto por um denso cogumelo de árvores nórdicas. A fantasia refazia-se aí com a agilidade veloz das brumas. A proximidade do oceano espalhava uma insinuante neblina, que se escondia nas próprias pedras. Podia-se pressentir ou mesmo adivinhar que sob cada uma delas se escondia um génio de fumo, que desaparecia veloz por entre as baixas copas das primeiras dunas. Os homens cantavam estranhos ritos de vitória. Perseguiam a pé os animais através da densa floresta e rastejavam sobre as pedras de modo a não serem vistos. As pedras despenhavam-se abruptas sobre abismos onde só pendiam raízes, seculares raízes que pareciam pôr, desse modo, à mostra o ventre da terra. Olhar esses lugares era olhar as circunvelações internas, as entranhas da própria terra. Os animais olhavam por vezes tranquilos e os homens, nas pedras, ficavam parados, como que estarrecidos e presos à terra.
Nesse Inverno em que o sincelo se agarrou de madrugada às árvores, o infante teve um encontro estranho, ainda que brusco e rápido. A Roca é uma vértebra que se orienta como um eixo. Do lado setentrional a terra faz como que uma barriga batida por um vento. As vertentes são agradáveis, como aliás o são também as do lado meridional, ainda que inóspitas e expostas à mais completa solidão. Foi aí entre o restolho húmido dos bosques que o infante viu surgir das brumas uma espécie de leão solar.
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A aparição teve o efeito dum rito e Afonso deu, à mão, luta ao animal. Foi uma luta rápida e ágil em que o pêlo do animal parecia chispar com o fogo. O homem assemelhava no seu movimento sólido e cauteloso um poderoso centauro, que se servisse das pernas como eixo fixo e do tronco como manha. Que é afinal, o tronco senão uma árvore de que as pernas são as raízes? O tronco era nele o pensamento, o artifício, enquanto as pernas eram a força, o mais natural instinto. O primeiro ardia numa labareda, enquanto o segundo se enraizava na terra. Mas, foi aí, nas pernas, já duplamente em sangue riscadas e até em certos lados rasgados, que o animal dominou. Fez, porém, desta vitória o segredo inesperado do seu afastamento, deixando mais estupefacto do que desesperado o homem.
O animal, que tinha de fabuloso a agilidade do seu pescoço e o raro do seu pêlo, afastou-se em direcção ao mar. Tinha o andar cauto duma imagem e é possível que o rei o tenha tomado como um mensageiro. A Roca estava, com efeito, povoada de seres e de acontecimentos estranhos e mágicos, e os raros camponeses que cultivavam a oliveira e a vinha, que faziam no mar azenhas, saber que remontava à presença dos árabes na Serra e no Cabo, contavam histórias magníficas acerca do sítio. Uma delas, por exemplo, prendia-se com os astros e remontava, segundo se cria, a muito longe. Os vários povos que se sucederam na região idealizaram-na sempre como o último lençol possível, o finisterra por excelência. Os monteiros entretinham-se a partir amêndoas e a beber caldo enquanto ouviam, com o infante no meio, as histórias fantásticas da Roca. Eles eram, nesses instantes, uma juventude feliz. As agruras, dos casebres, onde as mulheres pariam deitadas ao pé das cabras, apareciam-lhes envoltas num hálito de calor essencial, capaz de redimi as piores misérias (14)». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310/4996.
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