Cortesia de domquixote e touaabarrotar
Um buraco no chão.
«O céu devia estar cheio de rezas e choros, porque nessa tarde condensou a água de repente e choveu tudo duma vez. Fez-se escuro como a pele dum rato e, minutos depois, largou o peso na terra.
Alguns pescadores da Marginal, que durante a semana trabalhavam em repartições, lojas e oficinas da cidade, e se atrasaram no transporte para os subúrbios, bebendo mais uma cerveja nos cafés, já não o puderam fazer, e o que aconteceu a seguir lembrou-lhes as vagas gigantes das marés vivas do Inverno, que batem nas rochas altas dos mexilhões e perceves da costa, os mariscos aéreos, e esguicham com força, levando um ou outro homem para o mar salgado.
A onda bate na falésia e ergue pelos ares a cana de pesca e o balde das larvas de mosca, puxa o pescador no oleado, estrebuchando como o peixe no anzol, e afoga-o na espuma de iodo. Perdeu-se mais um bom chefe-de-família por aproximação a precipício, mordeu o isco que o mar lhe lançou, queria levar um robalinho para casa e descansar da vida, mas só o mexilhão e o perceve e os limos, e também a lapa, claro, conseguem agarrar-se nesses repuxos traiçoeiros do oceano, porque é ali mesmo que vivem.
No entanto, a chuva na capital nesse dia começou sem brutalidade. Só uma persistência pouco comum, não caíram primeiras gotas, caíram hectolitros de gotas no mesmo segundo, vaga de água doce, uma cascata vertical espremida das nuvens pretas nos telhados. Depressa cresceu para uma parede líquida sobre Lisboa como só uma vez ou duas em cada século.
Cortesia de aleteonocturno e domquixote
E logo a seguir, baralhada por súbitos ventos cruzados, quentes e frios, atiçados por relâmpagos metálicos, a chuva começou a escorrer com força pela cidade, mas sem saber por onde, e muito mais água chegava pelos veios que desciam das outras colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas do eléctrico, numa competição de rios sem nome, acabados de nascer no meio das avenidas e praças.
Daí a pouco, os carros andavam com água pelo volante, abrindo sulcos no caminho, até que batiam nos passeios, ouvia-se um som pastoso no granito, os automobilistas abriam as comportas e pulavam pelas sarjetas como fuzileiros nos desembarques de praia, protegendo-se das saraivas.
As buzinas enrouqueceram e calaram-se, os motores fizeram bolhinhas fumarentas nos charcos de barro, antes de rebentarem pelo tubo de escape, no Cais do Sodré.
Muitas saídas estavam entupidas com prédios novos, betão, barracas e muros, outras cobertas de lixo, garagens subterrâneas escavadas à noite no leito dos riachos. Numa cave de Alcântara cem carros afogaram-se ao mesmo tempo, num pacto de morte mecânica.
Cortesia de librarythinkquest
Nos vales de Chelas, ao lado das hortas de couve e nabiça, dos talos submersos espetados no solo como bandeiras, afundavam-se viadutos e pilastras erguidos no sítio errado por ordem de alguém.
Nas zonas baixas, autocarros giravam agora em remoinhos e pareciam manadas de baleias desorientadas a dar à costa, para encalharem nos canteiros e morrer.
Jovens subiram aos jacarandás da Avenida da República e esperaram toda a noite aos gritos, como macacos. Mais de trinta árvores solitárias, muito velhas ou muito novas, caíram pela raiz nas matas e jardins, sopradas pelo ar.
Desconhecidos deram as mãos em corrente e salvaram uma senhora que não sabia nadar mas não largava a carteira, ao Campo Grande.
Um atleta fugiu a nado dum túnel e só o encontraram de manhã, embrulhado num casaco que não era dele e a dizer palavras sem sentido.
A linha verde do metropolitano entupiu e a carruagem fez de cobra-de-água, a maior anaconda da floresta perdida, até que parou por falha eléctrica.
Toda a gente na cidade deu cabo dos sapatos». In Rui Cardoso Martins, «Deixem Passar o Homem Invisível», Publicações Dom Quixote 2010, ISBN 978-972-20-3828-7.
(Continua).
Com a amizade da Isabel, Ana e João.
Cortesia de Dom Quixote/JDACT