Cortesia de foriente
Introdução à leitura da Década Quarta de Diogo do Couto
«Contraste impressionante: enquanto o cronista escrevia as glórias dos Gama passados, o Gama presente, o vice-rei, acumulava os desaires. O mais deplorável foi o desastre de D. Luís, seu irmão mais novo, prematuramente feito capitão-mor da armada despedida contra o que passava então pelo mais incómodo, perigoso e arrogante inimigo do Estado; o Cunhale Marcá, «mouro arábio de casta naiteia», que, com fortaleza sobre a foz do rio Cunhale, do qual tomara o nome, fazia sombra ao próprio Samorim, e se intitulava «rei dos mouros do Malavar, e Senhor de todo o mar da Índia». A expedição redundou numa «das mores desaventuras e afrontas que os Portugueses passaram na Índia»... Em Goa a má vontade contra D. Francisco, e contra o culto dos Gama, aumentava de dia para dia, e tomava poder o arcebispo frei Aleixo, que se metia em tudo.
Em Novembro (1599) havia Couto concluído o seu «Tratado dos Gama», cuja epístola dedicatória a D. Francisco tem data de 16. Não se conhece o manuscrito original desta obra. Mas conservam-se, na Biblioteca Nacional de Lisboa, uma cópia completa, e na Torre do Tombo, uma cópia truncada mais antiga. Mais de uma vez se projectou a edição, que nunca se realizou. O «Tratado» não tem valor histórico: é uma pura decocção do ; que tinham escrito sobre Vasco da Gama e os seus filhos, Barros, Góis e o próprio Couto. Abrange desde a viagem de descoberta até ao tempo de D. Álvaro de Ataíde, filho do descobridor, como capitão de Malaca, que corresponde ao capítulo VII do livro X da «Década 6».
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Em fins de 1599 negociava D. Francisco as naus destinadas a Lisboa, após ter tratado da armada do Malavar, à qual competiria a segunda expedição contra o Cunhale. Do reino, tinha chegado a armada de D. Jerónimo Coutinho com notícias da morte de D. Filipe II, e também do único filho varão do vice-rei (do primeiro casamento): Vasco, como o descobridor. No sentido Goa/Lisboa, na armada que se estava a preparar iria o manuscrito da «Década 6». O respectivo «visto de saída» parece uma feliz consequência da conclusão e entrega ao vice-rei, do «Tratado» encomendado.
Foi certamente no último ano do século que Couto converteu em Década a «Crónica da Ásia filipina», que iniciava a história do segundo ciclo da Ásia portuguesa. Esse ano de 1600 começara com uma nova armada, comandada por André Furtado de Mendonça, na foz do rio Cunhale. Em Goa, recolhera-se ao mosteiro dos Agostinhos, o príncipe de Abadaxão, convertido ao cristianismo em Ormuz. Couto diz que o ia visitar. Em 21 de Fevereiro, o rei, que decidira substituir D. Francisco no governo da Índia, nomeou para o almejado cargo o escalabitano Aires de Saldanha, filho daquele António de Saldanha que fora capitão de Sofala, e andara com Afonso de Albuquerque. Em Março, na iminência do ataque ao Cunhale, André Furtado discutia o caso com o Samorim, nosso aliado mais ou menos sincero naquela empresa. O ataque deu-se, foi bem sucedido, e os Portugueses apoderaram-se do Cunhale e do seu acólito Chinale depois de estes se terem rendido, e entregado ao Samorim. A fortaleza foi destruída no dia 22.
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Vitorioso e de posse dos chefes inimigos, André Furtado partiu no dia 25, fez escala em Cananor, e surgiu na barra de Goa a 11 de Abril. As desinteligências com D. Francisco imediatamente começaram, não devia o vice-rei ainda saber que o seu governo se aproximava do fim.
A 24 de Abril deu à vela, em Lisboa, a armada de Aires de Saldanha. Mas o novo vice-rei não chegaria a tempo de pôr tento, se é que o desejaria, na vingança que se tirou do Cunhale e dos seus. Logo ao desembarque dos «bárbaros gentios» houve mortos por linchagem, e os prisioneiros foram deitados no Tronco de Goa. Diogo do Couto não ia só visitar príncipes e embaixadores. Também refere que foi trocar impressões com o Cunhale e o Chinale, e que o primeiro lhe deu uma lista dos principais entre os seus, perdidos na batalha. Sem embargo do desastre do irmão no ano precedente, D. Francisco chamou a vitória a si, e quis equiparar a destruição do Cunhale aos triunfos de D. João de Castro e Matias de Albuquerque, ordenando procissão e missa cantada anuais no dia da façanha. Couto defende esta posição, mas narra sem aplauso o suplício do Cunhale e do Chinale, executados publicamente, antes com velada admiração pelo primeiro, que afrontou a morte recusando a conversão, ao contrário do segundo.
A sua cabeça foi salgada e ìevada a Cananor, onde a arvoraram na praia sobre uma haste, «para terror e espanto dos Mouros». A armada do novo vice-rei chegou a Cochim a 28 de Outubro (1600). Nesta cidade, Aires de Saldanha deu ordem para D. Francisco passar imediatamente os poderes ao arcebispo, de quem os cobraria ele próprio.
As naus em que devia regressar o Vidigueira a Lisboa ficaram prestes em Dezembro. Na iminência de levantarem ferro, inimigos do conde içaram num mastro do vaso, em que ele devia embarcar, um boneco do tamanho de um homem, simulando um enforcado. Outros armaram-lhe urna espera no meio do caminho, por onde o ex-vice-rei havia de ganhar o porto. Mas D. Francisco, talvez prevenido, embarcou à socapa, a hora inesperada.
Novas contrariedades o esperavam a bordo. Faria e Sousa diz que o orgulhoso conde vendo o boneco enforcado no mastro, perguntou a quem representava. Responderam-lhe que a ele mesmo. O conde teria mandado deitar a figura ao mar, e levantou ferro. Dois dias depois teve de voltar a Goa, a fazer provisões, porque as aves que levava para a viagem tinham todas morrido. Mão inimiga deitara-lhes veneno na ração». In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT