sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Luísa Sigea. Diálogo de Duas Jovens sobre a Vida na Corte e a Vida Particular: «Uma coisa monstruosa é o grau mais elevado e o espírito mais débil… a língua mais eloquente e a mão mais ociosa, palavra interminável e resultado nenhum, um rosto decoroso e conduta imprudente, grande autoridade e firmeza instável»

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Tradução de excertos, realizada por Maria do Rosário Laureano Santos, a partir do original em latim: Colloquium duorum virginum de vita aulica et privata, de 1552. Não existe nenhuma versão portuguesa, apenas uma tradução francesa publicada em edição bilingue: Louise Sigéé. Dialogue de deux jeunes filles sur la vie de cour et la vie privée. Introdução, trad. e notas por Odette Sauvage. Paris, PUF, 1970.

Luísa Sigea
IV
Blesila: Enganas-te tu que assim tratas da paciência e imaginas que esta tem lugar no serviço dos príncipes; com certeza, estás cega; se tiveres ouvido qual é “a representação e o aspecto” da paciência e qual é o lugar onde habita, tu própria te confundirás. Na verdade, “tem um rosto tranquilo e calmo”, ainda segundo Tertuliano:
  • a fronte sem nenhuma marca provocada pela tristeza ou pela ira, as sobrancelhas serenas e igualmente com expressão alegre, os olhos baixos por humildade, não por desgraça, a boca selada em respeito pelo silêncio, e não só cor da pele é a das pessoas convictas e inocentes, mas também dirige com frequência movimentos de cabeça e um riso ameaçador contra o diabo; o manto, branco sobre o tronco, e cingido ao corpo, para que nada o levante ou agite; esta é a verdadeira paciência. A que antes imaginaste não é verdadeira, não vem do coração, mas é forçada quer pela ambição das recompensas, quer pelo medo de perder o que foi alcançado pelo serviço ou pelo trabalho; surge para que não reveleis o que sabeis sobre a arrogância e falta de cumprimento dos deveres dos príncipes para convosco, porque daí procede, contra vós, o despeito dos invejosos ou a alegria pelos vossos incómodos”.
Está sentada,
  • a que é a verdadeira paciência, no trono daquele espírito cheio de bondade e de doçura, que não sofre de perturbação nem é encoberto pelas nuvens, mas é de uma serenidade delicada, aberto e simples, como o viu Elias na terceira vez”,
não no átrio dos príncipes, onde arde a chama inextinguível da impaciência (tal como sabes), mas “onde está Deus, está aí também a paciência, nutrida por ele”; e, deste lugar, expande as suas forças invencíveis e torna invencíveis os que o seguem. De facto, através da sua força:
  • Isaías é cortado ao meio e não cala o seu testemunho sobre o Senhor; Estêvão é lapidado e pede o perdão para os seus inimigos. E Job, afastados todos os dardos das tentações com a cota e com o escudo da paciência, recupera de Deus a integridade do corpo, ficando com o dobro da que tinha perdido. E, se ele quisesse que os filhos lhe fossem restituídos (tal como diz Tertuliano), teria de novo o nome de pai, mas prefere que lhe seja dada a grande alegria no dia da glória, e suporta a privação voluntária dos filhos, para que não viva sem alguma paciência”.
Esta paciência, como eu disse, só pode habitar junto de Deus, porque só Deus é suficientemente idóneo para ela. Se tiveres colocado junto Dele a injustiça, Ele vinga-a, o dano, repara-o; a dor, Ele cura-a; finalmente, a morte, Ele ressuscita-a. Enfim, só a esta paciência é permitido ter Deus por devedor. E acerca dessa tua paciência fantasiada, que dizes tu, Flamínia?

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És capaz de me negar que aqueles que servem os reis não sejam completamente desprovidos de paciência, visto que vivem todos de rapina, roubando aos outros (se podem) recompensas e rendimentos; e que, mesmo de outro modo, não destruiriam os outros por causa da desordem provocada pela inveja, e que cada um deles não admitiria as vantagens do próximo com espírito indevido? Tu consideras injusto o príncipe que não distribui largamente todos os bens a cada um dos seus servidores. Mas, na verdade, quem são os príncipes, para que a paciência habite na sua convivência e no seu trono? Sobre eles, foi dito isto por Isaías:
  • “Todos os príncipes infiéis escolhem as dádivas, perseguem as recompensas.”
V
Blesila: No mesmo instante, eles amam e odeiam, favorecem e negam o favor, constroem e destroem, erguem e arrastam, elevam até aos astros aquele que hoje está coberto pelas honras, amanhã, pelo mais leve sussurro dos malévolos, deixam-no cair na infâmia mais profunda. O que granjeiam agora, logo recusam, desdenham e debilitam, com o olhar ameaçador dado pela natureza para punir. Quando têm necessidade de servidores, quer para mostrar a grandeza do seu poder, quer para preencher cargos distintos através da diligência destes, cobrem-nos de palavras e promessas e inflamam-nos com compromissos vãos. Depois, quando a caterva de aduladores (que rodeia sempre, por todo o lado, os príncipes) lhes perturba os ouvidos, as promessas desvanecem-se nos ares e tornam-se vazias e, ainda que os reis tenham sido favorecidos, só os aduladores vencem e determinam tudo, segundo o seu arbítrio. Estes aduladores tornam os reis insensatos, mesmo os mais sábios (se lhes dão ouvidos), com as suas palavras rebuscadas e falsas, sobre as quais diz Salomão:
  • Um rei insensato, sentado no trono, é como um macaco dentro de uma casa.” E diz Bernardo: “Uma coisa monstruosa é o grau mais elevado e o espírito mais débil, o lugar supremo e a vida mais vil, a língua mais eloquente e a mão mais ociosa, palavra interminável e resultado nenhum, um rosto decoroso e conduta imprudente, grande autoridade e firmeza instável.
O mesmo Bernardo também aconselha os príncipes deste modo (demonstrando na pessoa de Eugénio a cegueira destes): Destrói o artifício desta honra e da glória brilhante com cores falsas, para que consideres naturalmente a tua nudez, porque saíste nu do ventre da tua mãe, sem insígnias reais, sem o brilho das pedras preciosas e a da seda, sem ser coroado por plumas ou carregado com metais preciosos. De facto, se afastares todos estes ornamentos, como nuvens matinais passando o céu velozes e dispersando rapidamente, e os fizeres desaparecer da frente do teu pensamento, surgirá um homem nu, pobre e infeliz; um homem que se lamenta porque é homem, que cora porque está nu, que se lastima porque nasceu, gemendo porque existe. Todas estas coisas, minha cara Flamínia, não só não as vêem os príncipes (enlevados pela vaidade da sua condição e da sua dignidade), mas também que fúrias não exercem eles contra os seus súbditos, inteiramente esquecidos do que lembrei segundo Bernardo? Quando se indignam, a que terrores poupam os seus servidores? Querem ser honrados e admirados como se fossem igualmente deuses, e procuram sê-lo por todos? Em que não acreditam para causar a morte dos infelizes? Têm todos tendência para acreditar, segundo o autor destas mesmas palavras:
  • Existe um defeito – e se tu te sentes livre dele entre todos os que conheci que subiram ao trono, estás só – que é a facilidade em acreditar em ardis, uma pequena raposa muito astuta, e eu descobri que nenhum grande se afastou dele. Deste defeito, são provenientes para os próprios príncipes, por qualquer razão bastante insignificante, muitas iras, a condenação frequente dos inocentes e o julgamento antecipado dos ausentes.
São estes, com certeza, os vossos guias, para vós que servis os reis, Flamínia, isto é, eles próprios cegos e guias cegos; são cegos porque não se lembram da sua fragilidade e enganam-vos com a esperança falsa de honra – visto que não podem atribuir aos outros a verdadeira honra – a qual é efémera e se alegra com essa dignidade efémera.

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Vós também sois cegos, porque devotais a vida aos que nem sequer vida têm, tanto mais que a têm entregue ao arbítrio de outros. Com estes guias (enquanto vós acreditais aspirar a grandezas), caís no meio da estrada, porque vos falta o verdadeiro guia do caminho, ides por caminhos ínvios, isto é, pela via do orgulho, e excedeis em tudo a justa medida. O que é reprovado com firmeza por aquele que afirma: “Conserva o meio, se não queres perder a justa medida; por isso, o sábio considera um exílio todas as casas fora da medida, altas, porque ultrapassam a medida, extensas, porque a excedem, grandes ou pequenas, porque umas são maiores e outras, menores do que ela. O comprimento costuma conduzir à destruição, o afastamento à fissura, a altura à ruína, e a profundidade ao desaparecimento.”
Ora este é o meio, no qual reside a virtude, sabe-lo bem, Flamínia; e a virtude segue os passos de quem, se não forem os passos de Deus?
[...]
In Isabel Allegro de Magalhães, O Diálogo de Duas Jovens Mulheres, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, ISBN 1645-5169.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT