Cortesia de incm
«Esses inventários lançados em folhas finais de dois códices provenientes de Santa Cruz de Coimbra e actualmente na Biblioteca Pública Municipal do Porto oferecem uma interessante perspectiva sobre o ambiente cultural, na primeira metade do século XIII, dos cónegos regrantes portugueses, visto que o primeiro rol respeita ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e o segundo à canónica lisbonense de S. Vicente de Fora.
Quanto ao primeiro, trata-se de um rol de códices cedidos, em 1218 e 1226, pela canónica coimbrã, a três destinatários diferentes, declarando-se expressamente que o primeiro, Pedro Vicente, pertencia ao mosteiro lisbonense. Em outro lugar examinámos as razões que levam a admitir terem as três remessas de livros o mesmo destino em Lisboa.
Os primeiros códices lançados no rol, «libri ad Fisicam pertinentes», correspondiam sem dúvida a tratados de Medicina que António Cruz pôde identificar, denotando influências da Escola de Salerno e outros de procedência árabe.
Cortesia de wikipedia
O mesmo historiador levantou a hipótese, muito pertinente, de tão importante livraria de Medicina, a par da comprovada existência de alguns «magistri» que teriam formação médica, servir em Santa Cruz para o ensino daquela disciplina. A mesma hipótese da finalidade escolar se poderia estender, aliás, à canónica de Lisboa, visto nas três remessas de livros emprestados por Coimbra predominarem obras técnicas de Medicina.
Mas a transmissão de conhecimentos médicos, com uma organização própria, dando lugar a um ensino, não invalida, antes supõe e reforça, a prática da actividade de Medicina dentro do enquadramento hospitalar. Como hoje: não há ensino de Medicina sem doentes, nem sem enfermarias.
E é sobre este último aspecto que nos queríamos deter. A questão que se coloca ao investigador continua portanto em aberto: qual a finalidade, a utilização dessas três tão avultadas remessas de obras científicas? É sem dúvida impressionante que as obras de Medicina ocupem o primeiro lugar em qualquer das partidas de livros saídas de Coimbra. O facto tem de se conjugar com uma troca de cartas havida entre o prior Dom Paio, de S. Vicente, e Dom João, do Mosteiro de Santa Cruz, e que nos rasga um outro horizonte importante para a compreensão dos ideais e orientação dos regrantes:
- «a hospitalidade».
Como acentuou Dereine, sendo uma antiga tradição monástica, concebida como primeira fase da ascese e subordinada a um ideal de contemplação, ganha agora ,entre os regrantes um valor próprio, uma função nova:
- sendo um elemento tradicional, a hospitalidade adquire novos enquadramento e expressão ao ser retomada em ângulo diferente.
Cortesia de wikipedia
É D. Marcos da Cruz quem transcreve duas cartas no «Catálogo dos Priores do Mosteiro de S. Vicente» (ms. 314 da livraria, A. N. T. T.), começando a do prior Dom Paio por uma invocação dos preceitos de Santo Agostinho e revelando a ajuda e protecção hierárquica que o Mosteiro de Lisboa recebia de Santa Cruz. Das cartas se infere que já existiria um hospital junto à canónica de Coimbra, e que a sua sustentação se fazia por força dos dízimos, ou décimas, de todos os frutos e rendas do mesmo Mosteiro, das suas igrejas anexas e das da sua apresentação.
Dom Paio, que tinha mandado edificar em Lisboa um hospital semelhante ao de Coimbra, consultou, para seu esclarecimento e posterior resolução, o prior de Santa Cruz sobre os rendimentos que se lhe haviam de atribuir para a respectiva manutenção.
Os dois textos, dos fins do século XII, não obstante nos serem dados numa compilação tardia, oferecem o mais evidente interesse, quer no aspecto da vinculação à espiritualidade augustiniana que inspirava aquela iniciativa, quer na finalidade adstrita ao hospital, traduzida por significativa terminologia». In A Pobreza e a Assistência aos Pobres na Península Ibérica durante a Idade Média, Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Históricos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974.
Cortesia de Imprensa Nacional-Casa da Moeda/JDACT