sexta-feira, 2 de abril de 2010

Bernardim Ribeiro: Vozes e disfarces de «Menina e Moça». Parte II


Uma das inovações mais atractivas de «Menina e Moça» de Bernardim Ribeiro é o uso de uma, ou mais, narradora feminina. Essa inovação rompe com a tradição das narrativas em voz masculina estabelecidas desde a primeira novela sentimental escrita em castelhano, Siervo libre de amor, de Juan Rodriguez del Padron, embora pelo menos duas das obras que influenciaram o desenvolvimento do género sentimental na Península Ibérica (de Boccaccio e de Ovídio) sejam já narrativas em voz de mulheres.
Naturalmente, há antecedentes peninsulares: na lírica medieval, tnto as cantigas de amigo, que se tornaram populares no século XV, género, que segundo Helder Ribeiro era sensível em Bernardim.
As vozes de mulheres que dominam a narrativa não constituem uma categoria estável e Menina e Moça. Deste modo, Bernardim mostra-se consciente das limitações convencionais, isto é, de género, desse procedimento e tematiza-as no curso da narrativa.
A Menina, que dá o título à narrativa, está sozinha junto a um rio, observando como um rochedo no meio da corrente interrompe o fluxo do rio, separando as águas. O mesmo episódio do Rouxinol (em português é um substantivo do género masculino) é depois repetido enquanto acontecimento narrado a uma outra outra personagem. Esta, é uma mulher mais velha, a Dona do tempo Antigo, que vem ter com a Menina pouco depois do acontecido, e é dessa dupla narrativa que o texto se ocupa a seguir.
Descobrimos que existe uma dualidade no uso do género gramatical, e por isso na marca do sexo: a passagem começa com o Rouxinol, marcado como masculino, e logo depois muda para o feminino, com a substituição de «rouxinol»  por «avezinha» um substantivo feminino e também um diminuitivo.
Enquanto que o rouxinol masculino revela uma sensibilidade no feminino, a voz feminina reinscreve mais do que uma voz masculina, a mais importante das quais é a de Avalor.
In Isabel de Sena, Journal of Institute of Romance Studies (3) 1994-95.
O amor e as tristezas não se deixam explicar. A Menina não conhece a causa da sua levada, a fadiga de Aónia e de Bimarder aparece-lhes injustificada no momento em que se dão um ao outro e vão morrer. O amor não traz consigo um princípio de razão, mas tão-só infindos e múltiplos desvairos. Viver pelo amor é o único sentido da vida, como as mulheres o sabem.
Nesta ontologia negativa reside o enigma da Menina e Moça. O amor permanece um enigma que ninguém pode desvelar. A Menina e Moça são várias maneiras de o dizer. Os arvoredos espessos, as sombras, as aparições misteriosas, o mar sem limites (na história de Avalor) repetem o retiro do amor.
As coisas sofrem, a mágoa da rola a quem o caçador mata o companheiro e cujos filhos morrem imediatamente não é menor qua a da criatura humana (é o mistério desta ave). É para guardarem o amor que as mulheres desejam ouvir tristezas e por isso também já entre os homens todos os caminhos vão dar a contos de mulheres porque também os homens são apanhados pelo amor.
A frase-chave da Menina e Moça, enunciando o enigma, é e será:

Trazem-nos os nossos fados com não sei que antolhos, que temos as coisas diante e não nas vemos.

É o que ilustra a história do Cavaleiro da Ponte, morto por amor oito dias antes de expirar o prazo de três anos de espera e de esforço que por amor havia aceite.
In Fernando Gil e Helder Macedo, Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português.

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