sábado, 10 de setembro de 2011

Gama Caeiro. A Assistência em Portugal no Século XIII e os cónegos regrantes de S. Agostinho: «Começando pela assistência na doença, as canónicas de Santa Cruz e de S. Vicente oferecem-nos indícios, no século XIII, de uma estrutura permanente relativamente desenvolvida, […], numerosos livros de medicina para o bom desempenho das funções e hospícios, hospitais e enfermarias»

Cortesia de luardejaneiro 

«Não insistiremos em factos que são do conhecimento de todo o estudo de História Medieval, mas cumpre mencionar que o rico repositório documental concernente a S. Vicente de Fora, Santa Cruz de Coimbra e Grijó - para só citar as três mais importantes canónicas portuguesas da época, deixando de lado Nandim, Costa, S. Jorge e Arganil -- existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (e, embora de menor torno, na Biblioteca Pública Municipal do Porto) em matéria de doações, de testamentos, de dízimos, de tombos, de capelas, de propriedades, de privilégios, de cartas, de alvarás e sentenças de reis, de obituários, nos oferece, sob este aspecto, perspectivas inexploradas. Isto para não citar outros arquivos de valor sob este aspecto, como os do Vaticano, além da própria documentação já publicada, aguardando revisão a esta nova luz.
Para demarcar melhor o ângulo da assistência que nos interessa examinar, vamos deixar de lado os aspectos da «assistência espiritual» a prestar às populações mais desfavorecidas embora se não perca de vista que os actos ministeriais de uma forma «cura animarum» constituíam uma forma assistencial muito importante para o homem medieval - para tomarmos em primeiro plano o que respeita ao corpo, ao amparo físico e restabelecimento de energias, aos mantimentos, e, sobretudo, à saúde.

Cortesia de mirelemartins

Começando pela assistência na doença, as canónicas de Santa Cruz e de S. Vicente oferecem-nos indícios, no século XIII, de uma estrutura permanente relativamente desenvolvida, compreendendo médicos, numerosos livros de medicina indispensáveis para o bom desempenho das funções e, ainda, hospícios, hospitais e enfermarias. Da documentação, nem sempre surge com nitidez quais os beneficiários desses serviços, se estes se destinavam exclusiva ou principalmente a religiosos, ou eram extensivos aos «laicí», conversos e outros habitantes sob jurisdição dos regrantes, ou indiferentemente a quem os solicitasse.

Assim, numa carta de 1264, que respeita ao célebre pleito do «isento» do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, cita-se um «Magistrum Joannem Medicum Canonicorum dicti Monasteriy», mas do facto de Mestre João ser o médico dos cónegos regrantes não se infere a exclusão de serviços prestados a outras pessoas. Um códice da Biblioteca Pública Municipal do Porto, «Gemma Corone claustralium et speculum prelatorum ordinis Sancti Augustini» fornece, sob este aspecto, dados do maior interesse.

Cortesia de oguapore

Num passo desta memória, aludindo com vários pormenores ao capítulo provincial dos regrantes, celebrado no Porto em 1228, o autor nomeia, entre os participantes, um D. Pedro Pires, «notável (magno) em Gramática, Medicina, Lógica e Teologia e excelente pregador».
Pela sua importância invulgar, este códice foi aproveitado, entre outros, por Nicolau de Santa Maria, Frei Fortunato de S. Boaventura, depois por Joaquim de Carvalho e Pinho Brandão, e, em 1964, analisado mais detidamente pelo Prof. António Cruz, e, de novo, em 1967, pelo comunicante, os dois últimos nas obras antes citadas. Refiro expressamente estes dois estudos por algumas conclusões a que pretendo agora chegar se apoiarem em investigações referidas naqueles trabalhos e que mutuamente se completam.

A interpretação que parece mais aceitável do passo da «Gemma Corone», pelas razões que oportunamente aduzimos, atribui esse cónego D. Pedro Pires, não à canónica coimbrã, mas a S. Vicente de Lisboa. Este facto não teria grande relevância se o problema dos médicos não tivesse de ser conjugado com o dos receituários, antidotários e outros livros de Medicina constantes de dois preciosos inventários de bibliotecas monásticas recentemente descobertos, da maior importância para o conhecimento da cultura medieval portuguesa. É dessa aproximação de elementos que pode surgir alguma luz em domínio até agora, por assim dizer, totalmente desconhecido.
O primeiro desses inventários foi estudado e editado pelo Dr. António Cruz; e o segundo, na nossa obra acima referida». In A Pobreza e a Assistência aos Pobres na Península Ibérica durante a Idade Média, Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Históricos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974.
Cortesia de Imprensa Nacional-Casa da Moeda/JDACT