quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Isabel Allegro de Magalhães. O Diálogo de Duas Jovens Mulheres: «A perspectiva teocêntrica é pois o enquadramento de toda a argumentação, e os termos em que Blesilla a exprime vibram em simpatia com a preocupação “spenceriana” pelo transcender do tempo e pela eternidade»

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«Neste diálogo o tempo para além do tempo, ou seja, a eternidade, é a preocupação central. A argumentação de cada uma das mulheres desenvolve-se à volta desse eixo, como diz Odette Sauvage na Introdução que faz ao texto. Blesilla exprime-o dizendo que «a finalidade, pois, é Deus; os que para ele se dirigem vivem felizes». E Flamínia, num outro contexto, afirma a mesma visão, ao referir-se a Cristo nestes termos: «E em primeiro lugar o próprio Cristo, nossa luz e nosso guia [...]».
A perspectiva teocêntrica é pois o enquadramento de toda a argumentação, e os termos em que Blesilla a exprime vibram em simpatia com a preocupação spenceriana pelo transcender do tempo e pela eternidade:

What booteth to have beene rich alive?
What to be great? [...]
When after death no token doth survive,
Of former being in his mortall hous,
But sleepes in dust, dead and inglorious.
(“The ruines of time”)

Na argumentação de Flamínia o tempo por ela vivido aparece como mais «moderno», e até de certa forma avant-la-lettre, na medida em que pretende conciliar o temporal e o eterno, em que tenta integrar a realidade histórica e o para além da história na sua vida concreta, ou seja, integrar a «vida na corte» e uma «vida espiritual». Eis o que ela diz à sua companheira de discussão:
  • Blesilla: mais vale descoser pouco a pouco a inevitável túnica dos vícios antes que através de uma longa prática ela adira a nós, permanecendo no meio dos nossos amigos e dos nossos inimigos (uns pelos seus conselhos, outros pelas suas críticas poderão forçar-nos a ficar distantes dos vícios), em vez de rasgar essa túnica duma vez, escapando, fugindo à multidão num momento em que, por pouco que esses vícios se tenham desenvolvido, nós já não poderemos escapar ao seu poder.

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É claro [...] que ao resistir no meio das tentações com a alma invencível, se merece mais louvores do que fugindo-lhes.
Embora Flamínia queira chegar ao eterno através de uma imersão no mundo, a ideia renascentista do carpe diem parece, porém, totalmente ausente: a fugacidade do tempo, mais sentida na corte, é tida por esta mulher como vantagem, como vimos. Pelo contrário, a sua amiga, neste aspecto menos «moderna», considerando a condição de efemeridade do mundo, faz o elogio da vida retirada, livre de preocupações superficiais e passageiras, vida em que é possível uma dedicação ao estudo, à filosofia, às coisas do espírito, das quais a corte é só desvio. E o tema do segundo dia de discussão é a futilidade da vida de corte; sobre esta pronuncia-se Blesilla da seguinte forma:
  • Hoje [...] é sobre as futilidades da vida de corte, ou [...] sobre as frivolidades que a nossa discussão vai tratar. Elas cegam-nos tanto que vós apreciais a vida de corte e procurai-la de todo o coração.
Perante essa frivolidade a proposta de Blesilla é a fuga da corte, e do mundo:
  • [é necessário] abandonar no momento oportuno a Ur dos Caldeus e fugir deste mundo onde tudo não é nada, onde aquele que pensa ter algum valor o não tem, e não é ninguém, é necessário «passar» como David [...]. Mais vale retirarmo-nos enquanto isso nos é possível e frequentar aqueles que podem tornar-nos melhores. [...] este ensinamento não pode praticar-se na corte ou dirigir-se à multidão; pode praticar-se no campo entre alguns companheiros. A minha vitória não está na minha fuga, mas fujo para não ser vencido.

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Curiosa é neste diálogo a afirmação de valores relacionados com o tempo das mulheres, valores que permanecem intactos ao longo de séculos, inclusivamente até ao vigésimo século: são valores já de raiz hebraica e universais afinal, que dão relevo à vida familiar e caseira, à mulher entregue ao marido e aos filhos, ocupada em trabalhos manuais, tendo embora momentos dedicados ao recolhimento. Vejamos a este respeito as palavras de Blesilla:
  • as jovens [...] são destinadas ao casamento [...] deverão ser submissas aos seus maridos [...], generosas, [...], serviçais [...] trabalharão a lã e o linho com as suas próprias mãos, dedicando-se tão constantemente ao seu lar que tornarão os seus maridos felizes e veneráveis.
Para Blesilia este parece ser o «ideal» da ocupação feminina. Paralelamente, na corte, vemos as mulheres gastarem o seu tempo em cuidados reveladores da sua condição de «ser-para-agradar-ao-homem», como se comprova pelas descrições de Flamínia sobre a vida de corte.

O tempo de Blesilla, por um lado, é em muitos aspectos tradicional, como vimos, mas com características que fazem dela, creio que indiscutivelmente, uma humanista no sentido quinhentista (com o estudo dos clássicos, o refúgio na filosofia, a procura intelectual como dominantes da sua vida); o tempo de Flamínia, por outro lado, sendo embora menos «humanista» nas suas preocupações exprime-se no entanto num estilo que é revelador da formação clássica que ambas têm (o «mosaico de citações», como lhe chama Odette Sauvage, nas suas falas é disso sinal bastante), e é certamente um tempo mais «moderno» do que o da sua companheira, mais integrador da realidade humana e temporal.

Contudo, no final do século XVI, poderíamos ainda ouvir, como eco da realidade social das mulheres em geral e sobretudo da maneira como elas são olhadas pelos homens, as trovas de Jorge de Aguiar «contr’as molheres» no Cancioneiro Geral:

Lembre-te qu’ee por naçer
nenhu~a que nam errasse,
[...]
lembre-te que sam molheres.

Espanha foy ja perdida.
por Letlabla hua vez
e a Troya destroyda
por males qu’Elena fez.
[...]
ca a que fez pecar Adam
foy a maãy destas molheres.
(Jorge d’Aguyar, “contr’as molheres”)

In Isabel Allegro de Magalhães, O Diálogo de Duas Jovens Mulheres, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, ISBN 1645-5169.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT