quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «Em 1435, tendo o Infante conseguido do Papa uma bula em que lhe concede a conquista das Canárias, logo Castela envia embaixadores à Cúria protestando; e o mesmo faz o bispo de Burgos no concílio de Basileia nas “Alegações contra os Portugueses”, onde agora não só reclama para a coroa castelhana a posse das Canárias, “como a da Mauritânia e da Tingitânia, isto é, da região de Tânger, base naval atlântica”»

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Alguns dos feitos que se calaram
«Dois factos culminantes vieram nos últimos trinta anos rasgar âmbito novo e ilimitado à história dos Descobrimentos portugueses: dum lado a demonstração, já hoje realizada, desde Ravenstein a Joaquim Bensaúde e Luciano da Silva, da supremacia e originalidade da nossa ciência náutica durante a renascença; e do outro a afirmação, ora clara, ora hesitante, feita por vários historiadores desde Oldham Yule a Faustino da Fonseca e Vignaud, do descobrimento pré-colombino da América pelos Portugueses. A demora no conhecimento dum e na afirmação do outro só é possível explicar-se pelo extremo cuidado com que a coroa os escondeu dos outros povos. Reunindo ao presente os materiais para um largo trabalho sobre aquele segundo facto e tendo procurado conhecer melhor as causas e o processo do sigilo nacional, aliás já hoje comprovado, vamos expor certas averiguações que julgo vem transformar as bases, em que até aqui tem assentado a historiografia dos Descobrimentos durante a Renascença.
O monopólio do comércio oriental, que nós na essência visávamos desde o infante D. Henrique, realizado que fosse, havia de acarretar consequências e repercussões económicas e políticas tão graves sobre quase toda a Europa, que os dirigentes da empresa nacional, por menos dotados de previsão que fossem, não podiam deixar de a rodear das maiores reservas e defesas.

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A posse do comércio levantino fora de longa data para todas as nações mediterrâneas o índice supremo da sua prosperidade e domínio, desde o império Romano à república de Veneza; ao findar da Idade Média os embaraços que o dificultavam faziam desse tráfico o problema de mais urgente solução para a economia da Europa; e em Lisboa e Lagos, onde ancoravam então a cada passo as galés adriáticas, que iam levar ao Ocidente e Norte da Europa as especiarias indianas, essa eloquente realidade haveria primeiro de deflagrar as ambições e de seguida aconselhar os maiores resguardos à sua realização.
d. Henrique transforma assim logo desde o começo, com o assentimento do Regente seu irmão, a sua empresa marítima num monopólio, 1443. As penas aplicadas aos nacionais que se intrometessem sem a sua licença e mais tarde sem a licença régia, nas suas navegações, vão desde a confiscação dos navios e mercadorias até a pena de morte. No reinado de D. Afonso V chega-se a ordenar até que as tripulações dos navios estrangeiros, encontradas nas zonas das navegações, fossem aí mesmo lançadas ao mar «sem mais ordem ou figura de juízo».

Até onde ia no ânimo do Infante o pensamento desse exclusivo?

Cremos que abrangia todas as navegações atlânticas, ressalvadas apenas as que tocavam ao comércio europeu. Dentro das concepções geográficas de então era natural que se hesitasse, e sabemos pelo «Esmeraldo» que foi assim, entre o caminho pelo sul ou pelo ocidente para alcançar a Índia. A não admitirmos estes vastos propósitos, uma parte da sua obra torna-se incompreensível.

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Com os estrangeiros e em especial com Castela, e aqui se move o eixo da questão, a efectivação desse monopólio apresentava grandes dificuldades. Só um poder culminante a todas as nações europeias, o Papado, o poderia sancionar. A Igreja todavia levou muitos anos a fazer, contra as pretensões de Castela, tamanha concessão. Por isso, durante longo tempo, D. Henrique sustenta uma luta renhidíssima para fechar o Atlântico e as novas navegações à Espanha. Como os nossos cronistas quase totalmente se calaram a tal respeito, essa parte da obra do Infante passou até hoje despercebida dos nossos historiadores; e torna-se mister recorrer aos cronistas espanhóis e a alguns documentos esquecidos para estudar certos dos seus propósitos ocultos.

Como exemplo apontaremos os seguintes factos. Em 1424 D. Fernando de Castro é enviado com uma forte armada contra as Canárias, que já então os castelhanos tinham começado a ocupar. Posto que a expedição não fosse de grandes resultados, no ano seguinte o bispo e Burgos, D. Afonso de Cartagena, vem a Portugal, como embaixador do rei de Castela, reivindicar para a respectiva coroa a posse de todo o arquipélago. Mas D. Henrique nunca mais desiste nessa luta, que os nossos cronistas esconderam. Em 1435, tendo o Infante conseguido do Papa uma bula em que lhe concede a conquista das Canárias, logo Castela envia embaixadores à Cúria protestando; e o mesmo faz o bispo de Burgos no concílio de Basileia nas «Alegações contra os Portugueses», onde agora não só reclama para a coroa castelhana a posse das Canárias, «como a da Mauritânia e da Tingitânia, isto é, da região de Tânger, base naval atlântica» (publicado em 1912 por Ernerto do Canto, em latim, Biblioteca do Escurial).
Essas pretensões representavam para Portugal um perigo enorme (228)». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

Cortesia de Portugália Editora/JDACT