Com a devida vénia a Aires A. Nascimento, Comunicação apresentada à Classe de Letras na sessão de 21 de Janeiro de 2010
J. V. de Pina Martins em Convívio com os Clássicos
«Quem algum dia teve o privilégio de ser recebido na biblioteca pessoal de José Vitorino de Pina Martins, foi possivelmente surpreendido pela revelação de um pequeno livro, de encadernação oitocentista e cor vermelha, guardado em caixa forrada a veludo da mesma cor: nada menos que a edição de Horácio saída em 1501 dos prelos de Aldo Manúcio, adquirida em Paris a um antiquário, André James, grande erudito, especialmente atento às novidades do mercado livreiro e particularmente lúcido em reconhecer e identificar raridades de origem portuguesa. Foi este exemplar dispensado por ele a J. V. de Pina Martins, a título de favor e amizade, por uma pequena fortuna – de nada menos que 80. 000 Francos franceses, em moeda antiga, cerca de 2 500 contos, ou sejam 12. 500 euros.
Cortesia de academiadascienciasdelisboa
J. V. Pina Martins guardava esse exemplar em grande honra e teve oportunidade de escrever as razões do apreço que lhe devotava, quando elaborou as memórias da sua biblioteca em Histórias de Livros para a História do Livro. O enlevo consagrado a este exemplar do texto de Horácio tê-lo-ia ouvido o visitante da biblioteca da própria voz do seu digno proprietário, pois com ele costumava iniciar a visita. No livro, ficou uma interpelação que define uma vida.
Pergunta J. V. Pina Martins:
- «Já algum dia experimentaste, caro Leitor, como é diferente ler uma poesia de Horácio, ou de Virgílio, ou de Petrarca, por um livro mal encadernado e por um exemplar de edição raríssima encadernado por um grande artista?».
Há sensações e sentimentos intraduzíveis, para os quais as palavras são supérfluas ou correm o risco de (entre)cortar o enlevo. No modo interrogativo, porém, fica patente que há novidades que apenas cada um pode experimentar e que, relativamente a uma edição modelar, persistem afectos tanto mais profundamente acalentados quanto mais se percebe o significado cultural desse livro, depois de serem escrutinadas as razões das escolhas do editor e serem conhecidos os efeitos decorrentes do seu trabalho.
Cortesia de academiadascienciasdelisboa
Havia afecto profundo àquela edição renascentista, que era uma das mais valiosas do de quantas se perfilavam nas estantes da sua biblioteca: esse afecto exprimia-o Pina Martins em modo de reciprocidade, pois (confidenciava) os grandes autores e as melhores edições procuram aqueles que os amam.
Nesse universo cabiam sobretudo as edições aldinas que revisitava com frequência: entre elas o Iamblicus, impresso em 1497 e o In calumniatorem Platonis, de Bessarion, publicado por Aldo em 1503. Perseguira também o Plato de 1513, em que o mesmo editor se dirigia a Leão X e, por entre o louvor das letras (que só a paz permitia assegurar), comparava a novidade da imprensa com a gesta que os Portugueses estavam a realizar nas Índias.
Sabia bem Pina Martins que as edições aldinas representavam escolhas editoriais marcantes de um tempo:
- sumamente bem estruturadas constituíram modelo tipográfico decisivo na história da difusão do livro e da leitura;
- tiveram elas honras de serem transportadas para a Utopia, na versão de Tomás Moro, pela mão de Hitlodeu, o português que, no seu génio de aventura e na loquacidade que mal se impõe, a todos nós representa.
Eram clássicos, gregos (sobretudo) e latinos (alguns), os livros que eram levados para a Nusquama, nome latino da Utopia; com isso se queria significar que para o Novo Mundo havia que transportar o que de melhor fora registado pela escrita no Mundo Antigo, e passado a livro impresso nos Novos Tempos. A unidade do mundo podia fazer-se não apenas pelas novas vias abertas pelos mares, mas também e sobretudo pelos novos instrumentos que, multiplicados, tornavam acessíveis os textos no encontro dos povos, numa nova ecúmena de cultura partilhada; as suas formas elegantes cabiam na palma da mão e os caracteres eram facilmente legíveis para que a leitura estivesse ao alcance de todos.
Este traço de união entre dois mundos (o antigo e o novo) define a personalidade de Pina Martins devotada ao estudo dos tempos do Humanismo Renascentista, em que o aprofundamento das leituras dos Antigos serve as novas expressões (vernáculas ou latinas) que interpretam a dignitas hominis numa nova consciência da fragilidade humana e no compromisso de dar plenitude à complexidade das relações humanas, sentidas agora na largueza da ecúmena estendida à diversidade das gentes e na dimensão do tempo que vinha de longe e se pretendia projectado em sonho de futuro.
A lição que nos deu Pina Martins em Utopia III é feita de sentido da medida, de serenidade contemplativa e juízo crítico, de conversação bem-humorada, de cruzamento de memórias com aspirações de uma Humanidade reconciliada consigo mesma, ufana da sua memória distendida (como a do quadro de Dali), sem transgredir a regra básica do conhece-te a ti mesmo e sem abdicar da dignidade do Homem, sempre em construção.
Cortesia de academiadascienciasdelisboa
A esse convívio compareciam, em lugar primeiro, as figuras de Pico della Mirandola e Erasmo.
- a primeira era figura emblemática, particularmente pelo seu De dignitate hominis, e por isso tinha o seu retrato bem em evidência na sala da biblioteca para presidir à leitura;
- a segunda simbolizava a sabedoria irénica e magnífica no juízo filológico certeiro que ultrapassava as derivas dos textos e na magnanimidade de um coração generoso e sincero que integrava em sentido maior o que outros tomavam como bandeira de combate.
No santuário das grandes leituras figuravam Dante e Petrarca e o olhar repousava em Tomás Moro, o santo traído na própria entrega à sua Nação pelas autoridades dela, mas capaz de, por entre as vicissitudes de uma carreira de dedicação à vida pública, apontar o lugar (sem lugar) em que se conciliassem as aspirações do Mundo Novo com as do Mundo Antigo.
Para a mesa de convívio eram convocadas ilustres figuras de homens de letras com quem Pina Martins havia trocado leituras e formado a consciência dos longos tempos de cultura. A cada passo de uma conversação (em cadeia de memórias inesgotáveis) surgiam os nomes de grandes leitores como Marcel Bataillon e Eugenio Asensio, mas também grandes exegetas como Paul Vicaire, Henri de Lubac, Eugenio Garin, Germain Marc’hadour, Jean Claude Margolin e tantos outros que nos corredores da Universidade como Rebelo Gonçalves, Jacinto do Prado Coelho, L. F. Lindley Cintra e das salas das Academias ou dos passeios pelos livreiros-antiquários lhe serviam de interlocutores.
J. V. Pina Martins
(1920-2010)
Penalva de Alva
Cortesia de academiadascienciasdelisboa
Cada livro da biblioteca de J. V. Pina Martins era habitado por textos vivos e declaravam a sua história. Como grande leitor que era, colocou-se ao nível de outras figuras cimeiras que, pela leitura, contribuíram para nos restituir uma memória comum, na sua largueza e plenitude. Se Jorge Luis Borges escreveu que preferia ser recordado como leitor a ser tido como escritor, Pina Martins, pela exactidão e pelo enlevo com que recordava as suas leituras, que citava de cor e reconstituía em pormenor de página de uma edição relevante, responde, em bastantes dos seus traços, a essa personagem que Borges, em registo especular, retratou como «Funes, el Memorioso»: sabia sempre a hora exacta, como o «cronométrico Funes»; como ele, familiarizou-se depressa com os textos clássicos e, como ele, mantinha a memória deles, no caso de Funes, a Naturalis Historia é uma sinédoque pela vastidão que encerra e deles fazia motivo de partilha. Se nos vem à lembrança Ireneo Funes, sem qualquer outra intencionalidade que não seja a de sublinhar o prodígio de memória que era e o seu amor pelos clássicos, fica-nos também o contraste com ele, através da outra realidade de quem já fez entrar na eternidade os atributos antigos, continuando a olhar-nos com a serenidade aprendida nos clássicos e com a qual sempre nos olhou.
Cortesia de culturaclassica
Seleccionando testemunhos da memória da cultura, ao longo da sua vida, Pina Martins habituou-se aos melhores autores e aos seus textos, leu com a profundidade de quem sintoniza com eles, os coloca no ambiente cultural que os trouxe até nós, os acolhe no vigor da sua representatividade e procura a sua integração na memória de tempos passados para a memória dos tempos futuros. Fez do livro instância maior de relações humanas – intensas e calorosas. Fez da leitura partilhada o melhor modo de construir um universo de cultura. Fica como luzeiro a iluminar caminhos. À Academia das Ciências entregou ele, certo dia, um incunábulo do De civitate Dei, de Santo Agostinho, em edição veneziana de 1475: fê-lo declaradamente para completar um elenco de cem incunábulos, número que queria fosse simbólico do interesse desta Casa pela cultura do livro e dos velhos autores, iniciado por outras figuras luminosas como Fr. Manuel do Cenáculo. Com mágoa sentiu depois que o incunábulo ficara esquecido e clamava pela sua companhia. Honrar-nos-emos a nós se tivermos em conta o seu reparo como lição que é e assim deve ser tomada. In Aires Nascimento, Comunicação apresentada à Classe de Letras na sessão de 21 de Janeiro de 2010.
Cortesia da Academia das Ciências de Lisboa/JDACT